PINTURA PÓS-TV

Uma Reflexão Pictórica Sobre o Meio Eletrônico

Dra. Romanita Disconzi

 

            Pintura Pós-TV, apresenta uma pesquisa de pintura enquanto linguagem, contemplando tanto aspectos sintáticos como semânticos.

            Nesta pintura a pincelada, tomada como unidade estrutural básica da sintaxe pictórica, realiza um percurso auto-referencial, que vai da construção de uma imagem figurativa (ícone) a uma versão abstrata (desvinculada da função representativa de construir uma imagem) e novamente retorna ao ícone (pincelada representada).

           Pintura Pós-TV é uma expressão pictórica que, enquanto técnica artesanal de pintura, alude à sintaxe e aos processos de construção da imagem eletrônica, ao mesmo tempo que revisita Seurat e os Neo-Impressionistas. Trabalhando com uma pincelada dividida, refere-se tanto ao pixel televisivo quanto à pincelada dos neo-impressionistas e impressionistas.

            Experiências com a imagem televisiva, manipulada através de um Processador de Imagens, em vídeos que realizei na The School of the Art Institute of Chicago, nos Estados Unidos, entre 1979/1981, são o ponto de partida para esta maneira de pintar que foi chamada de Pintura Pós-TV. Os efeitos de cor e luz obtidos nos vídeos são reformulados nas pinturas, nas quais as formas, além de serem construídas com pinceladas isoladas e ordenadas de acordo com linhas que representam o scanner, ou linhas de varredura, reinterpretando a sintaxe televisiva na sua essência mais elementar, apresentam, ainda, superposições, desdobramentos e contaminações de cor de uma área para a outra, que são alusões a operações características dos processamentos da imagem eletrônica. A extrema saturação das cores usadas em PPTV é mais uma referência á televisão.

            Com este processo construo figuras, uma iconografia pessoal formada por imagens e pedaços de imagens (metonímias) do universo pop-kitsch, das histórias em quadrinhos e heróis pós-pop da TV, dos fetiches da propaganda, dos sinais urbanos de trânsito e também de elementos retirados da iconologia religiosa, judaico-cristã e afro-brasileira, da história da arte e das imagens religiosas populares. Esta iconografia, portanto, se supre de muitas fontes, dentro do que André Malraux chamou de o museu imaginário, o museu sem paredes, da reprodutibilidade técnico industrial de imagens, hoje realidade do cotidiano, com seus signos, sua sintaxe, já utilizados pela POP ARTE.

            Faço uso de citações visuais, que se metaforizam, polissemicamente, pela montagem. É, mais propriamente, uma bricolagem de figuras de universo díspares, que se homogeneízam pelo processo estrutural das pinceladas justapostas. É portanto uma mistura de procedimentos que aludem a outros procedimentos, de imagens que aludem a outras imagens e onde a pintura, enquanto categoria artesanal histórica da arte retoma um caminho cronologicamente inverso ao da história, revendo técnicas dos Neo-impressionistas.

 

            A Pintura Pós-TV como reflexão sobre o meio eletrônico

            PPTV se constitui numa reflexão do meio eletrônico utilizando uma técnica artesanal, com a apropriação de elementos culturais díspares, que vai de ponta a ponta, da alta tecnologia da imagem ao mais elementar e primitivo método de representação.

            Em PPTV há que se considerar igualmente como mensagem não apenas sua semântica, mas também sua estrutura e configuração dos elementos sintáticos. O meio é a mensagem, diz McLuhan ( 1969, pg.27 ). Ao construir figuras, através de um método artesanal que alude à 3 sintaxe televisiva, considero que estou reagindo à ela, com outro meio, que me dá não só o instrumento, mas também o distanciamento necessário, uma perspectiva adequada, para melhor exercitar a análise e compreensão da natureza e da estrutura dos efeitos culturais e psicológicos da tecnologia eletrônica da imagem.

          Ao entrar de maneira intensiva no contexto eletrônico, com a experiência de captar e manipular eletronicamente a imagem, comecei a refletir também sobre a pintura, que fazia ao mesmo tempo. E uma atividade penetrou na outra, numa hibridização medida pela sensibilidade do humano: enquanto a televisão, que era meu grande mito, passou a ser objeto e tema da reflexão pictórica, esta passou a aludir também estrutural e tecnicamente aos procedimentos e efeitos conseguidos "pintando" eletronicamente, através da vídeo síntese.

         Sobre o impacto da tecnologia do vídeo e seus efeitos sobre o ser humano consideremos McLuhan em Os meios de comunicação como extensão do homem, onde diz que a tecnologia eletro-eletrônica é uma extensão de nosso sistema nervoso central, assim como a ferramenta o foi da mão e a roda, do pé. E, afirma ainda que se as novas tecnologias tendem a ser ao mesmo tempo extensão e amputação dos nossos sentidos, uma vez estes prolongados, nos colocam em estado de entorpecimento, pois sob a pressão de super-estímulos físicos, o sistema nervoso central reage para proteger-se, com uma estratégia de imunidade aos estímulos sensórios.

         Parafraseando William Blake, que dizia que nos tornamos aquilo que contemplamos, McLuhan considera que nos tornemos servo-mecanismos das tecnologias incorporadas. A televisão é um meio frio, isto é, que exige alta participação de nossos sentidos. A trama mosaica da TV cria um espaço plástico e icônico de uma baixa definição ( dos três milhões de pontos da tela o telespectador só conseguiria captar uns setenta). Esse mosaico bidimensional exige que a cada momento fechemos os espaços entre a trama dos pontos numa participação tátil, sensorial, sinestésica.

         A fotografia, a radiofoto dos jornais, o pontilhismo de Seurat, nos propõe também pontos para o olho completar. A TV, no entanto, nos familiariza com a imagem em mosaico, a qual implica em participação profunda do espectador.

         Face a uma tecnologia como a do vídeo, diz McLuhan, passaríamos a viver numa fixação "narcísica", enamorados de nossa própria extensão nervosa, completamente sonados, o que romperia o equilíbrio da expressão humana.

         Também Blake considerou que Newton, ao criar para o universo físico um paradigma análogo ao do mecanismo do relógio, foi incapaz de responder criativamente ao repto do sistema mecânico e sugere a estratégia de opor-lhe o mito orgânico. McLuhan acrescenta que Newton, como Narciso estaria hipnotizado pela sua própria extensão mecânica.

         Refere-se ainda o autor a um limite de "ruptura" onde, quando sob o efeito de uma nova tecnologia, ocorreria uma reversão dinâmica atuante. Uma das causa mais comuns da ruptura é o cruzamento com outro sistema. Por exemplo, considera que o alfabeto fonético foi o limite da ruptura entre o homem tribal e o homem individualista. E conclui que, sendo os meios extensões de nós mesmos, deixarão de nos assombrar se nos dermos ao trabalho de inquirir sobre a ação e seus procedimentos.

         Assim, ao nível pessoal considero que do impacto que tive ao ter contato intenso com a tecnologia do vídeo surgiu a necessidade de, através da pintura, um meio artesanal, quase orgânico, refletir sobre o meio eletrônico, buscando uma forma de expressão que me libertasse do fascínio do brinquedo eletrônico ( como chamávamos o Processador de Imagem, em Chicago), e permitisse o retorno da "extensão dos sentidos".

         O princípio da hibridização é uma estratégia de descoberta criativa, utilizada pelos artistas que secularmente têm tido a habilidade de se furtar aos golpes das novas tecnologias, neutralizando conscientemente seu impacto.

         Há ainda um outro aspecto da PPTV que julgo pertinente a um outro momento do livro de McLhuan: a dimensão lúdica ou de jogo, proposta com as imagens, a interação de seus significados, a "imagem texto" que apela para leituras polissêmicas. McLhuan vê os anúncios publicitários como reflexos diários de nossa sociedade que, á maneira de jogos são portadores dos significados da cultura atual.

         Os jogos, por sua vez são artes populares, reações sociais ás tendências de qualquer cultura, modelos dramáticos de nossas vidas psicológicas e considera a arte como uma espécie de substituto civilizado para jogos e rituais mágicos, que são meios de ajustamento às pressões das ações especializadas. O elemento lúdico do jogo, propicia "...situações inventadas e controladas,.. que permitem uma suspensão dos padrões costumeiros, como se a sociedade estabelecesse uma conversação consigo mesma." (1969,pg.27).

 

         A Pintura Pós-TV como metalinguagem e os procedimentos pós-modernos

         Os trabalhos de PPTV estão constantemente se remetendo á pintura como linguagem, num discurso que alterna entre seu significado semântico e seu comentário sintático. Esse processo metalingüístico acentua-se gradativamente, passando pelos desdobramentos de cor, para mergulhar no abstrato, cuja única referência é a estrutura essencial do quadro do qual foi desdobrado, transformando-se nos elementos básicos de sua sintaxe: pinceladas e cor. Finalmente, retorna, iconicizando a pincelada abstrata, transformada em objeto referencial. Esse processo segue um sistema de seleção e análise da estrutura sintática, à qual passa a referir-se, transformando-se em metalinguagem.

         Na realidade, gradativamente a imagem na arte vem se tornando basicamente metalinguagem. Na verdade esta disposição já estava bem presente nas operações analíticas do Cubismo que, superando o ponto de vista único da perspectiva euclidiana, usado desde o renascimento, introduz a multiplicidade e simultaneidade dos pontos de vista, fragmentando a imagem através de um processo que exigia a análise da estrutura da forma.

         Entretanto esta passagem para uma operação analítica da linguagem pictórica já ocorrera anteriormente, de maneira significativa, no final do século XIX, com Seurat e os Neo-impressionistas. Com o pontilhismo o que Seurat cria é um processo, um sistema de pintar, que tem seu principal ponto de interesse no método de construção da imagem, mediante sua estruturação a partir de seus elementos constitutivos e elementares enquanto imagem pictórica: as pinceladas. Sua visão é prospectiva em relação á imagem da TV, que também se delineia a partir das unidades estruturais de seu código, os pixels.

         Partindo das leis físicas da ótica, Seurat apela para a fusão retiniana das pinceladas e das cores. Trata também de descobrir um sistema lógico e científico relativo à organização das linhas, numa operação nitidamente mental, que valoriza uma fatura que tenta descobrir as invariantes na base da linguagem pictórica. Essencialmente sintática, é definitivamente um sistema, que instaura uma teoria lingüística da arte e da pintura. É o problema da formalização do código visual da pintura que, sem querer alcançar os níveis teóricos da Semiótica, toca pontos extremos, chegando à enunciados icônicos e à configuração de uma consciência metalingüística na investigação artística moderna. A pintura enquanto linguagem, passa a ser metapintura, a privilegiar o código em detrimento da mensagem, que passa a ser seu próprio código e sua atuação nos introduz no universo cibernético, onde a estrutura das coisas é sua mensagem.

 

          Os procedimentos pós-modernos

         Após o período conceitual a pintura retorna como pintura pós-conceito, numa realidade pós-advento dos meios de comunicação de massas e da informática.. A arte do passado torna-se elemento estrutural, signo utilizável do vocabulário atual, convivendo com os signos do repertório presente.

         O discurso descontínuo das linguagens pós-modernistas torna a montagem um processo comum. Elementos isolados criam novo sentido com a técnica da montagem, que é por excelência do cinema, que trabalha com fragmentos e cortes. Como no ideograma chinês, que é um amálgama de hieróglifos isolados que compõem um significado, a montagem é um procedimento paratático. A parataxe é um processo de dispor lado a lado blocos de significação, sem explicitar a relação que os une.

A organização das imagens em PPTV segue um procedimento paratático. A parataxe é também o princípio estrutural do hai kai, poesia tradicional japonesa, que segundo Bashô relaciona dois elementos básicos, um de permanência, outro de transformação, de percepção momentânea que sem produzir um terceiro, sugere uma relação fundamental entre ambos: a iluminação poética carregada de significação.

         Os conjuntos de imagens reunidos em meus trabalhos guardam esse tipo de relação significativa, uma imagem projeta significado á outra.

 

         O imaginário e a bricolagem

         A bricolagem é a operação básica de PPTV. Em seu livro O pensamento selvagem, Claude Lévi-Strauss considera a bricolagem como uma forma de atividade que ilustra tecnicamente a s operações da reflexão mitopoética. O pensamento mítico que se expressa com o auxílio de um repertório heteróclito, extenso. Porém limitado, é uma espécie de bricolagem intelectual.

         Considerando a magia como uma metáfora do pensamento científico, Levi-Strauss afirma que o pensamento mítico aborda a história com o que ele chama de "ciência do concreto", a qual não operaria por meio de conceitos, mas de signos, como uma forma de observação, de organização e especulação "do mundo sensível, em termos do sensível." (1976,pg.37).

         O bricoleur não busca conseguir ferramentas ou matéria prima vinculada à execução de um projeto, senão que seu projeto é que parte de um universo instrumental fechado, de um conjunto de utensílios e materiais heteróclitos, pré-existente. Seu projeto é feito de acordo com a renovação do estoque dos resíduos que coleciona.

         Voltado para um conjunto já construído, refaz seu inventário, interroga seus objetos para compreender o que significam, quais as suas possibilidades de se encaixarem noutro conjunto. Essas probabilidades, entretanto permanecerão vinculadas, em algum grau, à história particular de cada elemento, que vem já carregado dos significados de seu contexto anterior, para qual foi concebido e que se transmite à nova expressão. Por exemplo em PPTV, o sinal de proibido, pela sua alta carga semântica residual do contexto de origem, faz predominar seu significado muito específico.

         Os elementos usados pela bricolagem fazem parte de uma coleção de resíduos de obras humanas, saturados de densidade humana, de significados que são endereçados a algo ou a alguém. A mensagem do bricoleur é de qualquer maneira, pré-transmitida, e por ele colecionada. A imagem representa o papel de signo, não de idéia, com a qual coabita. Embora a idéia possa não estar ainda definida, o signo pode aguardar seu futuro aparecimento, sempre que formar um sistema onde tudo o que modifique um elemento atuar automaticamente nos outros.

         A bricolagem, como o pensamento mítico, trabalha com lacunas de analogia e significação, onde o arranjo dos elementos, em incessante reconstrução, estabelecem significados que se tornam significante e vice-versa, o que poderia ser uma definição para bricolagem.. A característica comum do pensamento primitivo e da bricolagem ( e por extensão da PPTV) é que ambos elaboram conjuntos estruturados, utilizando outros conjuntos estruturados, feitos de resíduos e fragmentos. Assim PPTV rearranja fragmentos do cotidiano e da história, criando através de uma mitologia pessoal e da sua carga mítica.

 

         A seleção do imaginário

         Os povos primitivos associam as divindades de seus clãs com espécies, animais ou vegetais, que tem ou tiveram influência, ou que ajudaram seu povo. Assim essas espécies fornecem os elementos com os quais formam seus totens. Segundo este tipo de pensamento, o homem civilizado poderia escolher geladeira, televisão e carro, por exemplo, como divindades clânicas, criando seus totens através de seus elementos numa operação de bricolagem. Lévi-Strauss fala também da possibilidade de "totens individuais". Assim o iconográfico que utilizo constituiria o tótem de um indivíduo da sociedade de cultura de massa. Então uso os elementos que colecionei (sinais de trânsito, imagens de televisão, iconologia religiosa, super-heróis pós-Pop da TV, etc.) como meus referenciais para construir quadros que poderiam ser considerados como "tótens pessoais".

         Os resíduos e fragmentos podem ser selecionados pelo bricoleur de acordo com determinadas vivências, que lhe conferem a carga semântica a nível individual.

         Existe uma analogia entre estas operações do bricoleur e do pensamento selvagem e o meu próprio processo de recolha e seleção de imagens. Das minhas vivências visuais da infância provêm as imagens do universo kitsch dos santinhos ou dos vitrais, surgindo o lírio da Anunciação, a pomba do Divino Espírito Santo, o Sagrado Coração em chamas, os querubins, os anjos, as arcadas, as flores (rosa, lírio, copo-de-leite, que também adornavam os altares). Da paixão pelos quadrinhos ficaram o Capitão América, Batman, o Fantasma, cujos ecos são revividos hoje nos super-heróis pós-Pop da TV: He-Man, ThunderCats, etc.. Da experiência urbana do dia a dia assomam os sinais de trânsito, os fetiches da propaganda, carregados de apelos psicológicos, e a imagem-ícone da televisão, meu grande mito. Enfim, todas essas imagens que fazem parte da iconologia da cultura mosaica(McLuhan), e que se revestem de importância psicológica e estética para a personalidade individual convivem num vocabulário que forma minha iconologia particular.

         Refiro-me à iconologia, no sentido que Panofsky confere ao termo, Omo um sistema ou conjunto imagético, onde se leva em conta um significado contextual. Em oposição à iconografia, como enunciado ou catalogação de um determinado sistema. Iconologia é mais síntese, denota algo interpretativo; iconografia é mais análise, descrição e classificação. Panofsky concebe "...a iconologia como uma iconografia que se torna interpretativa." (1970,pg 54).

 

         O abstrato pós-TV e a Pincelada Icônica

         Na sua trajetória PPTV segue um percurso que vai em direção á metalinguagem, ao abstratizar-se em um desdobramento onde um detalhe é "zoommificado", ampliado, transformando-se em pinceladas abstratas, não mais vinculadas à construção da imagem, mas que são apenas linguagem pictórica pura: pinceladas e cor.

         Este processo de PPTV é levado a uma conseqüência mais extrema, onde a imagem construída pelo método PPTV é sucessivamente ampliada, até chegar a uma única pincelada - Grande Pincelada Icônica Pós-TV.

         Esta versão metalingüística da pincelada homenageia Roy Lichtenstein, que em 1965 realizou sua série Big Paintings, onde apresenta paródias das pinceladas do Abstrato Expressionista construídas com características gráficas.

 

         A Pincelada Icônica

         Neta proposta se realiza uma reflexão sobre a pintura enquanto linguagem e se propõe um diálogo entre abstração x representação e entre representação técnico eletrônica x representação artesanal, e suas implicações sensíveis e perceptuais. A PPTV parte da representação de uma figura humana: TV-Ícone, imagem obtida com a intermediação fotográfica de uma "cara" do vídeo, no caso de um ídolo televisivo. Esta figura é tomada como base para um processo de desdobramento e ampliações consecutivas.

         Ao apresentar uma alusão ao processo eletrônico de construção da imagem, equiparando a pincelada-unidade pictórica, ao pixel-unidade eletrônica, e organizando as pinceladas de acordo com uma linha que representa o scanner, na sua ampliação abstrata PPTV nos mostra uma série de pinceladas que, embora realizadas com o mesmo gesto básico e portanto mantendo certa homogeneidade, são absolutamente diferenciadas. Embora repetida, a pincelada nunca é a mesma. Na tela da televisão, entretanto, um pixel é sempre idêntico a outro pixel.

         A partir desta elementar constatação é que as pinceladas, a medida que se ampliam, se tornam mais e mais icônicas, isto é se individualizam, adquirem uma identidade, se torna um "personagem", uma figura.

         A classificação icônica é aqui utilizada de acordo com o conceito peirceano de ícone, pelo qual um ícone é o signo que se parece com o seu representado da mesma forma que uma fotografia com o objeto fotografado.

         A pincelada Icônica é, na verdade um signo indicial (ainda de acordo com Peirce) que se iconiciza, pois a marca do pincel é sua principal feição. Como na arte oriental da caligrafia, à qual se vincula de modo muito particular, a Pincelada Icônica tem uma "espontaneidade construída".

         O conceito oriental de espontaneidade é bastante diverso e até oposto ao ocidental. Para o artista oriental a espontaneidade só é conseguida após severo e longo treinamento. E assim entre a idéia de espontaneidade gestual que a Abstração Expressionista ocidental assumiu, e a dita espontaneidade oriental, vai uma grande distância.

         A marca da pincelada caligráfica oriental encontra-se sem dúvida, na origem da Action Painting, onde é transformada num extremo de domínio emocional, assim como em Archile Gorky e Villem de Kooning e, mesmo em Franz Kline, este mais próximo de uma síntese entre o gesto expressionista e a escrita oriental.

         Talvez seja lícito também sugerir que a Pincelada Icônica de PPTV possa estar entre a Action Painting e o Construtivismo, uma vez que mantém um pouco de cada uma dessas duas formas de execução, tentando equilibrar o rigor construtivista com a emoção do gesto.

         Especificamente, a pincelada que passei a utilizar em PPTV é originária da pincelada que se utiliza para representar o caule do Bambu, tema clássico da pintura oriental.

         Esta particular pincelada, que se executa basicamente em três movimentos, sem levantar o pincel, tem a característica, segundo os cânones clássicos da estética oriental, da estrutura do osso, que corresponde ao "segundo cânone: KU FA YUNG PI- a estrutura do osso, uma técnica do pincel". (Osborne, 1978,pg.106). Segundo Osbone, esta característica encarna uma qualidade do TAO, de firmeza e força, uma das qualidades mais admiradas da caligrafia e significava fundamentalmente, pinceladas firmes e vigorosas.

         Considero ainda que PPTV aponta também para uma reflexão sobre o signo imagético e sua materialidade x virtualidade, ao apresentar uma abordagem que vincula um meio eletrônico, tecnológico e um meio artesanal, tradicional histórico de representação, realizando uma incursão à "contra-pelo" da história, como estratégia para melhor se situar contemporaneamente.

         Tanto as cores, como a forma das figuras fotográficas são transcritas para a tela obedecendo a um processo de interpretação poética, não mecânica, mas vinculada basicamente à intervenção da mão. A tradução da cor-luz em cor-pigmento é de ordem poético-sensível, embora mantendo referenciais de base científica nas suas correspondências.

Porto Alegre, novembro 1998.

 

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Bibliografia:

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VALIER, Dora. A arte abstrata, Edições 70, Lisboa, 1980.

 

 

 

Pincelada Icônica Pós-TV no. 1 - Amarela
Acrílico sobre tela
2,40 x 1,60 m.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pincelada Icônica Pós-TV no. 2- Violeta
Acrílico sobre tela
2,40 x 1,60 m.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pincelada Icônica Pós-TV no. 3 - Vermelha
(Homenagem a Roy Lichtenstein)

Acrílico sobre tela
2,40 x 1,60 m.

 

 

 

 

 

 

TV-Ícone no. 2 - Mulher Gato
Acrílico sobre tela
0,80 x 1,00 m.

 

 

(detalhe)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

TV-Ícone no. 3 - Caetano
Acrílico sobre tela
0,80 x 1,00 m.

 

 


(detalhe)