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uas questões atuais referentes à arte e ao seu ensino

Dra. Maria Lúcia Batezat Duarte

 

          Quais as relações entre a arte dos museus e a produção realizada por crianças e adolescentes na sala de aula de artes? Quais as interferências que o mercado de arte e os museus com suas obras consagradas provocam no ensino formal? Por que persistem as confusões entre arte e artesanato na sala de aula de artes? Quais as mudanças que as novas tecnologias imprimem nos conceitos e na fatura das artes visuais? Como passam a dialogar o particular e o coletivo na autoria da obra de arte produzida em rede virtual? Como a sensibilidade artística realiza-se "numericamente" no ambiente digital?

          Este texto quer ser uma breve reflexão sobre estes questionamentos reunidos nos dois subtítulos abaixo. Para isso o pensamento é tecido alinhavando notícias da mídia e conceitos trabalhados por teóricos já consagrados como Umberto Eco e mais jovens como Pierre Lévy.

 

      1. A Arte e o ensino da arte no contexto sociocultural

          Quase todos os dias dá no noticiário da televisão, nos jornais, nas revistas semanais de grande circulação: Pintura de Di Cavalcanti atinge o segundo maior preço de obra brasileira em leilão; obra de Van Gogh supera todas as expectativas de preço ... Ou então: Meninos de rua passam a freqüentar escola após descobrirem o prazer em jogar capoeira, cantar no coral, tocar instrumentos de corda, fabricar cartões para festas, pintar muros e paredes com figuras de sua imaginação.

          Afinal, qual a relação entre estes fatos? Todos remetem a um tipo de produção "artística". No primeiro caso, os leilões evidenciam o valor de obras de artistas já falecidos, cujo trabalho é consagrado pela crítica de arte, pelos historiadores da arte. Noticiam-se disputas entre museus e colecionadores de arte. Os museus desejam estas obras porque acrescentá-las ao seu acervo poderá significar maior prestígio e um maior número de pessoas, de público, percorrendo suas salas, pagando ingresso para vê-las. Os colecionadores têm no mercado da arte um meio seguro e charmoso de investimento.

          O museu é uma instituição cultural cuja tarefa é apresentar para a sociedade o melhor da produção dos sujeitos que a compõem ou que dela fizeram parte. Assim, por exemplo, a histórica dificuldade dos italianos em aceitar que a famosa "Mona Lisa" de Leonardo Da Vinci pertença ao museu parisiense do Louvre. Quem seleciona a melhor produção dos sujeitos desta ou daquela sociedade são os críticos e teóricos de cada área de conhecimento. Em arte, são os críticos, teóricos e historiadores que não raro são também, em suas vidas, presidentes, curadores, conselheiros, diretores de museus de arte. A relação entre artistas, críticos, teóricos, historiadores, colecionadores, diretores e curadores de museus acontece em espaços específicos, freqüentados por pessoas consideradas da elite intelectual de determinada sociedade. Então, o lugar de frequentação da arte altamente divulgada pelos meios de comunicação é o lugar da elite intelectual, geralmente coincidente com a elite econômica. Trata-se, neste caso, da arte denominada erudita ou arte de iniciados, produção articulada e realizada sob princípios teóricos formulados e/ou absorvidos pela elite daquela sociedade naquele momento histórico, e da qual o artista, produtor de arte, faz parte.

          Em camadas sucessivas de tempo, diacronicamente, a arte produzida nesse meio social ou reconhecida, acolhida por ele, vai preenchendo espaços e paredes dos museus, fundando a história de um povo, de uma sociedade, a partir dos exemplares eleitos pelos sujeitos considerados mais cultos, melhor preparados para selecioná-los.

          De outra ordem é a produção sobre a qual nos referíamos no segundo exemplo, dos meninos de rua, das crianças de favelas e bairros pobres de periferia. Em comum com os artistas de museu talvez tenham apenas a humana necessidade de inventar, de transformar, de dialogar através dos símbolos fugidios, imprecisos, particulares, que só a arte propicia. Para além dos museus, da crítica, da elite intelectual, resta o humano prazer de produzir algo próprio, algo que é do sujeito produtor, as vezes inteiramente, da idéia inicial ao objeto finalizado, as vezes fragmentariamente, a partir de idéias alheias, dos passos marcados da dança, da capoeira, ou seguindo a pauta e os acordes musicais de outrem, mas executando do começo ao fim, sendo pertencido e pertencendo integralmente àquele momento, àquele acontecimento, que é sempre único, dependente de cada ator, de cada personagem, como é da natureza da arte.

          Neste caso o que aparece na mídia é a notícia de um evento, o rápido aplauso a um processo educacional que vem se revelando proveitoso no resgate de sujeitos considerados quase à margem dos modos "adequados" de convivência social. Não se trata então de louvar ou preservar um produto de valor da sociedade em museus ou coleções de arte como no caso anterior, mas de reconhecer predicados a determinadas situações em que os princípios da arte aplicados na educação proporcionam uma resignificação das ações de estar em grupo, sob uma determinada liderança, com uma determinada finalidade, finalidade esta que produz um sentido individual e intransferível aos sujeitos que dela participam.

          Parece necessário então, considerar em primeiro lugar o caráter mítico da arte em dois sentidos. Primeiro porque, como os mitos, a arte permite tangenciar um saber e um sentir humanos que escapam ao discurso usual, ao limite imposto pela língua falada ou escrita nos diálogos corriqueiros. No mito, na trama e no drama dos personagens as palavras adquirem novos sentidos, provocam outros sentimentos e saberes. Segundo porque, nos mitos, todo o sujeito que age, que transforma a sua potencialidade em uma ação, que produz algo de novo pelo seu gesto, é passível de se transformar em um herói. Talvez seja o sentimento de heroísmo advindo da auto-exposição, da ação pública completada, que resgate nos sujeitos a dignidade e a individualidade de ser alguém no coletivo social.

          Nos dois casos, nos museus e nas salas de aula, o sujeito pode ser nomeado pelo seu produto. Dizemos "A dança" de Matisse e "As banhistas" de Cézanne. Também podemos dizer o solo de João no coral da escola, a "Dora" de Maria de Lourdes no teatro escolar, o desenho do Roberto. Uma idéia de inteiridade surge ligada ao nomear, enlaçando produtor e produto, dando-lhe posse integral de sua obra. Diferente da ação da grande maioria dos operários que, na indústria ou em outros modos de produção, participam apenas de um pequeno detalhe da execução de um objeto, seja ele um carro, uma roupa, ou um brinquedo infantil.

          Se ouvindo a notícia do leilão de arte não discutimos o valor artístico da obra de Di Cavalcanti ou Van Gogh, até mesmo porque o tempo, a história e o preço alcançado no leilão atestam este valor, o mesmo não ocorre quando a notícia é sobre arte nas atividades educacionais.

          O que realmente fazem os meninos e meninas que aprendem a jogar capoeira, brincam de encenar uma peça teatral, tocam violino, pintam figuras nas paredes? Em grande parte fazem exercícios artísticos, como tantos outros meninos nos ateliês de Rafael ou Rubens há tantos séculos atrás. Apenas alguns deles tornaram-se artistas também. Diga-se, artistas reconhecidos pela história. Os meninos da atualidade, ao estímulo do professor, são capazes de atuar "como se" fossem artista, sentir a responsabilidade e a alegria de oferecer um trabalho a um público, experimentar de verdade a tarefa de elaborar inventivamente, cuidadosamente, um personagem, um passo de dança, uma composição plástica. De algum modo essas experiências refletem e mantêm o status da arte dos museus: singularizam os sujeitos, resgatam as diferenças, imprimem na particularidade um sentido de humanidade.

          Entretanto, ainda na escola, nas "salas de aula de artes", outros grupos de alunos, repetem felizes, passo a passo, os ensinamentos de uma professora de artesanato dando continuidade a uma prática que desafia e desconsidera conceitos, confunde procedimentos e objetivos, compreende re-produção como produção de objetos. Nessas aulas os alunos adestram movimentos e técnicas para que ao final de um período de trabalho todos tenham produzido exatamente o mesmo caminhãozinho de madeira, ou a mesma flor de papel crepom. Ao final da tarefa a única dificuldade encontrada foi adequar o gesto ao movimento proposto pela professora. Nenhuma solução de problema, nenhuma inventividade. O espaço de ser livre, ser diferente, ser "herói" de uma saga solitária, cede lugar à necessidade de ser igual, de reproduzir com o máximo de fidedignidade um mesmo objeto.

          Em um grande canal de televisão brasileira, no final do ano 2000, Daniela Mercury, cantora popular, apresentava sua professora de Educação Artística e dizia ser ela a responsável pela confiança que adquirira em sua capacidade de criar, de inventar. Isto, com certeza a boa aula de arte é capaz de trabalhar. Sujeitos criativos e confiantes na sua própria capacidade de inventar e de solucionar problemas são aqueles que promovem a si mesmo e à sociedade da qual fazem parte.

 

          2. Novos conceitos, materiais e tecnologias do mundo contemporâneo

          Pierre Lévy (1990,1995,1997) é certamente um dos pensadores da atualidade com vasta produção teórica referente às novas tecnologias e às mudanças de conceitos e paradigmas que elas acarretam. A arte, não raro, tem sido motivo de seus estudos em especial a arte dita virtual ou ciberarte. Dois conceitos são especialmente trabalhados por Lévy: o envelhecimento da idéia de um único produtor do objeto artístico, no caso de obras executadas em rede virtual e a idéia de obra acaba, concluída, frente ao mesmo sistema de rede.

          Com Luigi Pareyson (1966) compreendíamos a arte como um objeto único cuja "lógica interna" é (era) resultado de um fazer humano particular que "enquanto faz inventa o por fazer e o modo de fazer", uma "forma acabada", objeto novo no mundo, cunhado por um artista, um produtor de arte. Com Umberto Eco entendíamos que a leitura da obra de arte depende (dependia) de um "diálogo interpretativo", que a obra de arte apesar de já completada fisicamente, permanece "aberta" "...a uma germinação contínua de relações internas que o fruidor deve descobrir e escolher no ato de percepção da totalidade de estímulos." (ECO, 1968, p.64) Pertence também a Umberto Eco o conceito de "obra em movimento". Na década de 60 do século encerrado, Eco buscava analisar obras de arte nas quais o artista possibilitava ao fruidor uma série (ainda que limitada) de modos diferentes de organizar, concluir e fruir a obra proposta, fato este extremamente visível, na época, em especial na música, onde a ordenação de terminadas seqüências ou acordes era factível ao fruidor ou intérprete.

          Como já se percebe, ou como percebem todos aqueles que conhecem a estranha, excitante, e infinita capacidade de alterar um texto, uma mensagem, uma imagem com um simples "click" no ratinho (mouse) do computador, são de outra natureza as questões propostas por Levy. Um pouco próximas talvez a idéia de "obra em movimento" de Umberto Eco. Mas, se na concepção de Eco o "movimento" do intérprete ou fruidor era ainda limitado pelo autor da obra, Levy nos fala do fim do autor, fim da autoria neste tipo de obra de arte produzida e divulgada em rede, pelo computador. Teríamos assim (já temos), alguém que em determinado momento cria um site, um lugar, uma janela na rede virtual e divulga ali uma primeira imagem que poderá e deverá ser alterada por todo internauta que entrando naquele site resolva modificá-la. Verifica-se, então, uma possibilidade infinda de modificações da imagem inicial, infinitos autores trabalhando uma imagem que se renova a cada toque de teclado, a cada "click" no ratinho. Este é provavelmente um exemplo de obra completamente aberta, cujo sentido ou mesmo conceito, idéia, que porventura tenha mobilizado ao primeiro dos autores não resiste, talvez, a duas ou três "visitas" àquela imagem, àquele site. O conceito que permanece é o da causalidade, da ampla liberdade de interferência.

          Mas, neste ainda estranho mundo das novas tecnologias, talvez para sempre estranho dada as novidades diárias que os sujeitos têm inventado incansavelmente, ainda é possível se encontrar obras com características, digamos assim, antigas. Encontramos artistas que utilizando materiais e técnicas do universo eletrônico ainda assim produzem obras segundo os princípios estéticos e filosóficos de tantos anos e tanta história. Pareyson e Eco não perderam a palavra nem o sentido.

          É ainda Pierre Levy quem descreve (LEVY, 1997-b, p. 94-102) suas experiências com obras de arte eletrônicas cuja característica é oferecerem ao fruidor/participante uma seqüência de ações e imagens com começo, meio e fim, ainda que pertença ao participante a escolha e a organização das ações a serem empreendidas e imagens a serem freqüentadas durante a experiência poética. Conta, por exemplo, que a artista canadense Char Davies apresentou, no Simpósio Internacional de Arte Eletrônica de 1995, a obra "Osmose" e relata a sua própria experiência ao penetrar no espaço construído pela artista. Diz que os participantes dispunham de 20 minutos para usufruir da obra e que a primeira ação necessária era vestir um equipamento estranho semelhante a um escafandro ligado a uma séries de cabos e aparelhos eletrônicos. Uma vez aparamentado, o participante deveria mover-se usando para isso a respiração (para subir e descer) e os movimentos de inclinação para frente e para trás do próprio corpo (para avançar ou recuar). Ainda precariamente adaptado à vestimenta o participante ia passando pelas primeiras experiências visuais e sonoras. Uma música suave e "Você penetra lentamente no mundo onde você é chamado a nascer, atravessando camadas de códigos informáticos que se parecem a nuvens, depois ventos constituídos por palavras e frases, para aterrissar finalmente no centro de uma clareira.(...) Animais semelhantes a vaga-lumes que dançam na floresta vêm lhe acompanhar. Um lago coberto de nenúfares e de estranhas plantas aquáticas brilha sobre o seu olhar." No centro do espaço, da clareira, uma árvore, inspirando, diz Lévy, você pode penetrar na árvore, sentir-se como a seiva, participar da fotossíntese. Saindo da árvore, de volta a clareira, expirando, você desce ao lago "Um peixe com nadadeiras ondulantes lhe acolhe no mundo aquático..." Como em frente a uma tela de computador, no espaço de Char Davies o participante escolhe um entre vários caminhos, depois retorna à "tela" inicial e decide um novo percurso. Entretanto, como observa nosso autor experimentador, em Osmose, "você não pode agir com as próprias mãos.(...) Ao contrário, para evoluir neste mundo vegetal e de meditação, você é conduzido a concentrar-se na sua respiração e nas suas sensações cinestésicas. É necessário estar em osmose com esta realidade virtual para conhecê-la." (LEVY, 1997-b, p. 94-102)

          A experiência narrada por Pierre Levy permite-nos fazer duas considerações sobre a arte virtual ou eletrônica. Em primeiro lugar, o exemplo citado refere-se à produção que Umberto Eco denominava, nos anos sessenta, "obra em movimento". Trata-se do exemplo musical de Eco tornado possível no formato audiovisual, isto é, reunindo imagens e sons. Uma seqüência a ser construída pelo participante/fruidor a partir de um conjunto de "módulos" dispostos pelo artista/realizador. Em segundo lugar, Char Davies e outros tantos artistas (entre outros Diana Domingues e Gilbertto Prado aqui no Brasil) usam todo um complexo tecnológico aparentemente duro, cerebral, normalmente apenas manipulado (com as mãos...), para possibilitar toda uma experiência corporal, sensorial, e intelectiva. Como em um passe de mágica a máquina torna-se suavizada e realiza um sonho, um devaneio, brinca com as emoções mais primitivas, mais humanas. Retornando a Lévy: "Aqui, o virtual está explicitamente concebido para incitar ao recolhimento, à consciência de si, ao respeito da natureza, a uma forma 'osmótica' [de total absorção] de conhecimento e de relação com o mundo." (LÉVY, 1997-b, p.99)

          Temos então, a arte e os artistas insistentemente, continuamente, dialogando com os sujeitos no mundo e, subvertendo qualquer tendência dominante, devolvendo ao homem a sua própria carne e os seus sentimentos mais profundos, transformando equipamentos eletrônicos, virtualidades, tecnologias, em experiências sensíveis, resgates de nossa frágil humanidade. Como se, no ruído ensurdecedor da máquina, o silêncio da reflexão ganhasse um novo espaço.

Florianópolis, outono de 2002.

 

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Referências Bibliográficas:

ECO, Umberto. (1968) Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, Col. Debates, 1971.

KRISTEVA, Julia. (1988) Estrangeiros para nós mesmos. Rio de janeiro: Rocco, 1994.

LEVY, Pierre. (1990) As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Edições 34, 1993.

....................... (1995) O que é o virtual ? São Paulo: Edições 34, 1996.

....................... (1997) Cibercultura. São Paulo: Edições 34, 1999.

........................(1997-b) As quatro obras típicas da cibercultura: Shaw, Fujihata, Davies. In: DOMINGUES, Diana. A arte no século XXI. São Paulo: Editora UNESP, 1997.

PAREYSON, Luigi. (1966) Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997.