O debate crítico gerado pela produção dos anos 80
Na visão de Bonito Oliva e Suzi Gablick

Flávia de Lima Duzzo

 

            A produção artística internacional dos anos 80 apresenta particularidades que geraram um debate crítico em torno de questões como: a volta à figuração no que se refere ao caráter formal e o retorno à pintura relativo à execução. Outro fator, decorrente da narrativa que esta figuração gera, é a temática. Há, também, um aspecto bastante controverso no que se refere ao caráter mercadológico desta produção. Os aspectos acima citados serão pontuados através das visões de dois críticos de arte: Achille Bonito Oliva e Suzi Gablick.

            Bonito Oliva, crítico italiano, criou um conjunto de formulações teóricas que embasou e legitimou a produção de pintura dos anos 80. Conforme nos esclarece Ricardo BASBAUM (nota 1) (1988:39), o corpo teórico formulado por Bonito Oliva foi gerado a partir da produção italiana e, devido ao seu amplo e rápido destaque, foi estendido a outras tendências internacionais da nova pintura. As formulações de Oliva utilizadas neste artigo datam de 1981 e foram publicadas na Revista Flash Art, através da qual anunciou a transvanguarda, um ano antes da publicação de seu livro Transavantgarde international . Maria Lúcia BUENO(nota 2) comenta que no livro acima citado, publicado em italiano e inglês no ano de 1982 , o crítico relata a passagem da vanguarda à transvanguarda elencando os artífices do novo universo agrupados por países (nota 3). Os textos dos artistas nova-iorquinos, italianos e alemães são elaborados por Bonito Oliva; os demais são elaborados por intelectuais selecionados de cada país, na língua original. Os representantes das transvanguardas italiana e alemã, numa manobra diplomática, furavam a predominância americana, passando a partilhar com eles o espaço de prestígio. (BUENO,1999:255).

            As formulações de Gablick, crítica de arte de nacionalidade americana, apresentadas neste artigo, encontram-se em seu livro ?Há muerto el arte moderno? que data de 1984 . Nele, apresenta o que considera as estruturas básicas da sociedade moderna: a secularização, o individualismo, a burocracia e o pluralismo, e, de cuja fusão, nas primeiras décadas do século XX , atribui o surgimento da arte moderna. Gablick discute questões como o fim da modernidade, a morte das vanguardas. Neste artigo, me deterei no tema da secularização, onde serão abordadas questões tais como: a temática adotada pelos artistas da transvanguarda e neoexpressionismo, a relação do artista dos anos 80 com o mercado de arte , entre outros.

            No início dos anos 80, quando em nível internacional, as obras dos artistas da transvanguarda e neo-expressionismo instauravam-se no panorama artístico, através das bienais de arte e, como conseqüência, fazendo parte do debate crítico de arte, iniciava-se minha formação em artes plásticas. Paralelo ao desenvolvimento de uma linguagem plástica pessoal, surgiam questionamentos sobre processo de criação e inserção de obras no sistema das artes que ficavam, muitas vezes, sem resposta. O conhecimento que se tinha da trajetória de um artista brasileiro, de acordo com o que a história da arte até então havia demonstrado, é que aquele alcançaria reconhecimento e espaço no mercado de arte aos 70 anos. Iberê Camargo(nota 4) ilustra esta concepção de artista.Viver profissionalmente de arte no Brasil sempre havia sido para poucos e estes estavam cientes de que tardariam muito para "chegarem lá". Entretanto, no início dos anos 80, no Brasil, principalmente no eixo Rio-São Paulo, um grupo de jovens artistas começa a ter uma vertiginosa ascensão de carreira, alavancada por "exposições coletivas (de 1982 a 1984) que marcam a reintrodução da discussão da pintura no circuito de arte brasileiro e, o surgimento de uma produção local relacionada diretamente ao novo contexto da arte internacional." (BASBAUM, 1988:46) (nota 5).

            Em 1986, o crítico italiano Bonito Oliva veio ao Brasil e organizou a exposição Transvanguarda e culturas nacionais, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, reunindo 10 artistas brasileiros (nota 6). Na visão de Frederico de Morais (nota 7), Bonito Oliva assumiu uma posição nitidamente eurocentrista em sua conferência. Segundo Morais, o crítico italiano teria deixado a impressão de que o fenômeno da transvanguarda só seria possível num país como a Itália, ficando os países do Terceiro Mundo na absoluta dependência de modelos e pautas européias.(MORAIS, 1995 : 414)

            Martin Grossmann (nota 8) vê na situação brasileira dos anos 80, por um lado, uma disposição instantânea de sintonizar com as tendências da cultura global, por outro, a precariedade do contexto local, carente de uma tradição que foi o suporte requerido pelo movimento internacional.


A TRANSVANGUARDIA, por exemplo, apoiava-se na sua história - há nesse caso, um diálogo frutífero com o seu passado. No entanto essa mesma tradição perdeu sua força no nosso contexto, principalmente pelo fato de não termos as referências in loco (em museus) como os europeus e os americanos. A debilidade desse nosso revival torna-se ainda mais evidente quando é sabido que a maioria de nossos jovens artistas pintores desconheciam a pequena história da pintura brasileira, ignorando até jóias mais recentes como Malfatti, Guignard ou Volpi, por exemplo.(GROSSMANN, in Basbaum,2001:351)

            

            Na visão de Dora Longo Bahia (nota 9), os artistas da Geração 80 não foram fazer arte buscando sucesso e fama; simplesmente, em um dado momento, vieram pessoas de fora e se lançaram encima deles, vendo-os como mercadoria. Houve um achatamento no tempo. O artista dos anos 80 viveu a sensação de ter chegado aos 70 anos com 20 anos. E agora? Dora comenta a dificuldade que alguns artistas jovens tiveram para administrar este "achatamento de tempo" e lamenta que muitos deles, por não terem sabido lidar com esta situação, tenham desaparecido do cenário nacional das artes plásticas.

            Dora acrescenta que com o fim do AI-5 e com a abertura política, nos anos 80, o acesso à informação fica mais facilitado e, no campo das artes, isto ocorre através da importação de revistas internacionais, livros e catálogos de arte e de Bienais sem os critérios impostos pela ditadura. Mas toda esta informação chega aqui e encontra uma geração sem referências, que não estava mais habituada a pensar, o que leva a uma repetição das formas apresentadas pelos outros, até que se aprenda a articular idéias novamente.

            Ronaldo Reis (nota 10) analisa o panorama político cultural e econômico brasileiro do final dos anos 70, com o intuito de entender a emergência simultânea de um grupo de artistas, a chamada Geração 80 (nota 11).

A explosão de vitalidade artística observada nos anos 80 foi, desde o início, agenciada ideologicamente por um pequeno grupo de jornalistas cariocas e paulistas com tradição no circuito de arte. Apresentando os jovens artistas ao público como representantes de uma 'nova geração' que surgia para ocupar o Vazio Cultural da década anterior, eles aproveitaram grandes impulsos ideológicos oriundos de campos distintos, mas convergentes quanto aos seus objetivos estratégicos. De um lado, no campo estético, a onda revivalista (nostálgica) que varria a arte européia e norte-americana desde os meados dos anos 70, se oferecia, convenientemente, como uma "novidade" para um mercado de arte estagnado como o nosso, além de servir para afastar o risco da transformação radical que a arte, desde o movimento neoconcreto vinha provocando. De outro lado no campo político, o plano absorvido o neoliberalismo da era Thatcher-Kohl-Regan, acelerando as mudanças estruturais que já vinham ocorrendo no mundo capitalista desde o fim da II Guerra ( como o processo de globalização da economia de mercado), e no plano interno, o longo processo de abertura 'lenta e gradual' provocava um inevitável desgaste das esquerdas....(REIS,1998)

            No contexto do mercado brasileiro de arte, a pintura do "novo artista" era oferecida como uma mercadoria além de atrativa, rentável. A obra era oferecida a seu consumidor junto com uma promessa de valorização, que no caso de obras de muitos artistas da Geração 80, realmente aconteceu. De certa forma, estas obras com suas cores vibrantes e irreverência espelhavam a "cara" que o seu consumidor estava querendo assumir em tempos de "abertura".

            No âmbito internacional


            O retorno à pintura no Brasil é decorrente de um contexto internacional maior que chega rapidamente até nós, através da globalização e dos meios de massa. "Precisamente no momento em que a economia mundial entrava em crise e a política virava para a direita" (WOOD,1998:235) (nota 12), torna-se clara avidez com que os dirigentes culturais, movidos pelas contingências do neoliberalismo, atiram-se nestas obras hedonistas pouco reflexivas e centradas na individualidade do artista, encontrando nelas uma saída para mostrar que tudo ficará bem novamente. "Certamente não é um aspecto positivo o fato de que grande parte do apoio crítico a essa pintura - mas não todo - proveio daqueles que tinham um interesse empresarial na saúde do mercado." (ibid.)

            A grande receptividade do mercado internacional de arte, para com as obras dos jovens artistas dos anos oitenta, coloca a própria obra "na berlinda", pois é certo que se estas não houvessem reaquecido um mercado cultural e não implicassem em quantias exorbitantes de dólares, não haveriam acirrado tanto a opinião da crítica e do público. É provável que a temática religiosa afastada do mito, adotada por artistas da transvanguarda e neo-expressionismo, por si só, não tivesse causado tanta polêmica se não houvesse ocorrido o enriquecimento da noite para o dia destes artistas. O que entrou em jogo com mais força foi o grau de desconfiança e mal-estar que este momento artístico gerou. Conforme comenta Paul WOOD:

Não já duvidas de que houve um elemento de pura reincidência na avidez com que o mercado se lançou sobre as pinturas aparentemente autoconfiantes e de alto poder de venda depois do mingau ralo dos trabalhos de texto e documentação fotográfica. Entretanto, é importante (embora não necessariamente fácil) tentar distinguir entre as intenções do trabalho e as formas pelas quais ele era apropriado aos interesses do mercado e dos curadores. (WOOD, 1998:233)

            Questões desta procedência serão abordadas a seguir sob o enfoque de Suzi Gablick.

            Considero descuidado avaliar de maneira generalizada o corpo das obras produzidas internacionalmente nos anos 80, bem como a postura dos artistas. A produção internacional mais representativa esteve composta pelos italianos (transvanguarda), os neoexpressionistas vertente alemã e neoexpressionistas vertente americana. Apesar do violento jogo de mercado que havia por trás destas obras, muitas delas obtinham mérito por qualidades intrínsecas. Consigo remontar o impacto provocado pelas obras de Kiefer, quando as vi por primeira vez. O profundo silêncio que provém da sobriedade de suas enormes pinturas, certamente não deixa o espectador indiferente. Gablick sinaliza para Kiefer como o artista que pode mudar o vazio espiritual que detecta em nossa sociedade, cuyas imágenes nos sugieren um compromiso, y la voluntad de creer nuevamente em algo. Me parece que Kiefer es uno de los pocos artistas de hoy que abre el camino de la concepción y el ideal de la renovación apocalíptica, y que intenta recuperar la dignidad espiritual del arte. (GABLICK,1984:116). Muitas das obras dos italianos da transvanguarda, independentemente dos postulados teóricos de Bonito Oliva, falam por si só e, através de suas cores, gigantismo e tratamento impõem uma magnitude. DE FUSCO (nota 13) considera pertinente que se faça uma leitura destas obras a partir do binômio belo/feio, uma vez que estas estão acionadas pelo prazer da pintura. Neste sentido comenta que estas obras são feias, parecem executadas por artistas inexperientes, ou pelo menos imaturos: parecem pintores de domingo empenhados em uma tarefa transcendente. (DE FUSCO, 1983:370) Apesar do binômio belo/feio tratar de critérios subjetivos, não estaria justamente aí o "jogo interessante" destas obras? Elas nos seduzem, nos impressionam nos envolvem sendo "feias" e "mal feitas".


Enzo Cucchi - Un sospiro di un onda, 1983 óleo sobre tela 300 x 400 cm



Bazelitz - Refeição Noturna em Dresden, 1983 óleo sobre tela, 280 x 450cm



Kiefer - Terras Fronteiriças, 1982 Areia e tinta de óleo sobre papel, 330 x 556cm


            David Salle (Olkahoma,1952), Eric Fisch (Nova Iorque, 1948) e Julian Schnabel (Nova Iorque, 1951) são os nomes mais representativos da vertente americana. Nas obras dos artistas da vertente americana percebe-se a influência do realismo americano. Estas obras se apropriam das imagens da cultura de massa, absorvem a linguagem da televisão, dos quadrinhos, do cinema e assimilam a cinética destes meios. A vertente americana do neo-expressionismo é mal vista por Suzi Gablick que se refere às suas práticas artísticas como um saque eclético de imagens gratuito e descomprometido.


David Salle - Era mi hombre medico o paciente. Pintura de época no.1, 1982 Acrílico s/ tela . 396 x 297,2 cm



Schnabel - San Francisco em Êxtase, 1980, óleo, pratos sbore argamassa,madeira e massa de vidraceiro 244 x 213 cm


            O retorno à pintura, depois de duas décadas voltadas à arte conceitual e ao minimalismo, resgatou a materialização do objeto artístico, da obra de arte. Este resgate pode ter outra leitura: a arte devolve a mercadoria ao sistema das artes, conforme comenta o historiador de arte de nacionalidade espanhola, Alfonso de Vicente Delgado:

... si el experimentalismo había llegado en sus lucubraciones hasta la negación del objeto artístico en sí mismo, para afirmar la validez únicamente del proceso o de la intención, ahora puede ya recuperarse el objeto (incluso descaradamente, con todas las implicaciones comerciales que pueda llevar consigo). La exploración pictórica que han conocido los años ochenta, fundamentalmente con los distintos neoexpresionismos (nota 14), precedidos por las corrientes hiperrealistas, recuperando géneros tradicionales, contrasta vivamente con las distintas tendencias de negación del objeto artístico tradicional (conceptualismo, minimal, body art, land art, happening...), que todavía perviven y coexisten, en ocasiones, con las nuevas figuraciones. (1989:11)            

            JAMESON (nota 15) aponta para o aspecto temático das obras dos anos 80, onde o colapso da ideologia do estilo do alto modernismo não deixou outra saída aos produtores culturais a não ser revisitar o passado: a imitação de estilos mórbidos, a fala através de todas as máscaras estocadas no museu imaginário de uma cultura que agora se tornou global (JAMESON, 2000:45) que, em sua visão, incidirá no que os historiadores da arquitetura definem como a canibalização aleatória de todos os estilos do passado, o jogo aleatório da alusões estilísticas, o chamado historicismo.

Entretanto esta onipresença do pastiche (nota 16) não é incompatível com um certo humor nem é totalmente desprovido de paixão: ela é ao menos compatível com a dependência e com o vício - com este apetite, historicamente original dos consumidores por um mundo transformado em mera imagem de si próprio, por pseudo-eventos e por "espetáculos"... (JAMESON, 200:45)

            Nos anos oitenta, em decorrência da globalização, as artes plásticas se convertem em cultura de mercado, onde o diálogo da arte com a mídia acarreta a formação de um star-sistem. O artista plástico que sempre esteve atrás de sua obra, na posição de autor e não de produto, passa a encarnar nos anos 80 a figura do pop star. No caso da performance e do happening, o artista está à frente como protagonista da obra, mas não como um produto a ser consumido. Estes artistas que adotam o perfil de pop star, nos anos 80, são denominados por Klaus Honnef (nota 17) de "filhos de Warholl com a NBC". HONNEF (apud BUENO). Conforme comenta BUENO, foi Andy Warholl quem inaugurou o flerte com a mídia e montou a Factory, não apenas como base de trabalho, mas também de promoção de sua imagem, com uma nova forma de atuação que chocou o mundo das artes.(BUENO,1999:265). Neste contexto de início dos 80, surgem os yuppies - jovens profissionais ricos e bem sucedidos - que aquecerão o mercado cultural, investindo em obras desta nova geração de artistas.

            A Transvanguarda Internacional

            A transvanguarda, como aponta BUENO, foi a primeira abordagem da ruptura com as vanguardas e a modernidade elaborada a partir da produção corrente, trazendo uma informação nova que o debate em torno da modernidade e pós-modernidade nas artes até então não havia produzido. (ibid.) A seguir, veremos alguns dos postulados da Transvanguarda de Bonito Oliva.

            Oliva considera que a arte da geração 80 opera na área da transvanguarda onde a linguagem é considerada um instrumento de mudança. Afirma que a transvanguarda opera fora dos princípios da linha evolucionista da lingüística darwiniana, conforme ocorreu com as vanguardas. A transvanguarda adota uma atitude nômade capaz de reverter a linguagem do passado. Na visão de Antoine Compagnon (nota 18), a reação da transvanguarda contra o darwinismo lingüístico e o evolucionismo cultural desconsiderou a historicidade das vanguardas, eliminando-as e afirmou dois valores: a catástrofe como diferença não programada e o nomadismo como travessia sem engajamento, através de todos os territórios e em todas as direções, inclusive a do passado, sem mais sentido do futuro. (COMPAGNON, 1999:117)

            O ressurgimento da pintura nos anos 80, que sucede a arte conceitual dos anos 70, caracterizada pela desmaterialização do trabalho de arte e despersonalização da execução, ...não acarreta em identificação com os estilos do passado, mas com a habilidade de escolher a partir de sua superfície, na convicção de que numa sociedade em transição rumo a um fim indefinível, a única opção é aquela proporcionada por uma mentalidade nômade e transitória.

...does not entail identification with the styles of the past, but the ability to pick and choose from their surface, in the conviction that, in a society in transition toward a undefinable end, the only option open is that afforded by a nomadic and transitory mentality. (OLIVA, 1981:36)

            Oliva encontra na produção da transvanguarda uma capacidade de, sem cair no autobiográfico, dar uma resposta às artes valendo-se da subjetividade e de uma linguagem consciente e controlada. Não vê a linguagem como uma medida totalmente subjetiva, mas sim como um meio irônico e consciente do prazer de sua própria presença. Ricardo BASBAUM aponta para a grande ênfase dada por Oliva para a subjetividade do artista dos anos 80 e para o fato de que, este artista, abandona a causa coletiva e volta-se para o presente imediato, tendo como referência a sua interioridade.

E a forma utilizada pelo artista dos anos 80 para trabalhar esta interioridade difere de outras atitudes já experimentadas no campo artístico: não se restringe, por exemplo, à exploração da prática da arte fora dos rigores da pura racionalidade (Dada), nem cultiva um projeto de trabalho mental dentro da teoria do inconsciente na arte (Surrealismo); da mesma maneira, não se limita à relação corporal artista-obra proposta por Pollock, com seu automatismo gestual-motor. Sem deixar e absorver cada uma dessas faces históricas, o impulso criativo interior do novo artista é principalmente vivencial, derivado diretamente da prática dos anos 60 - responsável pelo exercício da integração da paisagem interna do indivíduo com a paisagem física externa em uma matriz ambiental vivencial-corporal, sem a intermediação do objeto formalizado (BASBAUM,1988 :40).

            Segundo visão de Bonito Oliva, os artistas da transvanguarda não possuem um foco de interesse; sua atenção é policêntrica e dispersa numa grande área. Encontram-se num movimento lateral constante, cujo caminho cruza toda contradição e lugar comum, como originalidade técnica e operacional (OLIVA,1981:36). Os artistas aceitam todo tipo de influência, não importando a procedência. O ecletismo permite juntar vários níveis de cultura que haviam estado afastadas há décadas: a alta-cultura, objeto da tradição das vanguardas do início do século e das neo-vanguardas, e a baixa cultura, que é produto da imageria da civilização de massa. OLIVA(apud BASBAUM). O ecletismo consiste talvez no aspecto mais contundente das imagens criadas pala transvanguarda. Este ecletismo acontece tanto na escolha temática, quanto em matérias e nos conceitos que estas escolhas aportam. Aí reside o grande impacto destas obras que, para muitos, é visto como incômodo.

            Lyotard (nota 19), ao comentar o pós-modernismo, que tem a capacidade de assumir qualquer forma, apresenta seu descontentamento:

O ecletismo ,.. é o grau zero da cultura geral contemporâneo[...]. É fácil encontrar um público para as obras ecléticas. Fazendo-se kistch, a arte lisonjeia a desordem que reina no 'gosto do amador'. O artista, o galerista, o crítico e o público, juntos, deleitam-se com tudo e a hora é de relaxamento. LYOTARD (apud COMPAGNON,2000:119)

            Ricardo Basbaum comenta que a velocidade das imagens produzidas pelos meios de massa seriam transferidas para a lentidão viscosa do tempo de produção de pintura, capacitando o artista restaurar para a imagem a profundidade de semântica que parece ter sido cancelada pela civilização de massa .OLIVA(apud BASBAUM)

            De certa maneira, Oliva nos apresenta o ecletismo das obras da transvanguarda, mais como um ato generoso, democrático e despojado de preconceitos do que oportunista. Por outro lado, uma obra extremamente voltada para si, proveniente de um artista que tem sua individualidade extremamente enaltecida, teria capacidade de "olhar em leque"?

A transvanguarda não exalta o privilégio de uma genealogia de sentido único, mas pelo contrário, de uma genealogia aberta em leque sobre antepassados de diversas origens e proveniências históricas. Não existe apenas a classe alta das vanguardas históricas, existe também a classe baixa das culturas menores, de um gosto proveniente da prática artesanal e das artes menores. OLIVA(apud DE FUSCO,1988:370)

            Oliva aponta para características da então chamada nova imagem, persistência e emergência que, por um lado, possibilitaram o resgate dos processos tradicionais de arte e, por outro, possibilitaram a rejeição ou diferenciação das imagens precedentes. Considera ser aí onde a geração dos anos 80 redescobre o prazer da atemporalidade que, em parte, consiste na recuperação de linguagens, posições e metodologias pertencentes ao passado. Atribui à subjetividade do artista a capacidade de tornar as obras atemporais. O caráter atemporal é alcançado pelo fato de a obra nunca representar o presente do artista, práxis nunca repetitiva; o presente do artista não pode ser captado, uma vez que sua sensibilidade é inconstante. O trabalho responde sempre à demanda de uma ocasião que não se repete, já que as relações cambiantes do artista com seus materiais são sempre inéditas. O que se vê plasmado na obra é a relação entre a subjetividade do artista e seus meios de expressão. Oliva descreve o trabalho do artista dos anos 80 como: um micro evento que sempre se inicia do lado de dentro da imagem, o centro de radiação de sensibilidade, onde o artista se auto-referencia, ficando a sua interioridade em primeiro plano. Esta interioridade traz consigo latências emocionais, culturais e conceituais. (OLIVA, 19981:42)

            O artista dos 80 não tem mais a arrogante pretensão de manter o mito de uma integridade impossível e impraticável, tampouco o trabalho de arte pretende ser modelo de transformação simbólica do mundo. Com o fim das ideologias e a desintegração de visões unitárias do mundo, a idéia da obra que opera fragmentariamente é favorecida. No âmbito formal, o artista da transvanguarda se vale de pintura, colagem e desenho, combinando motivos espaciais e temporais com motivos artísticos.

O fracasso do discurso político e do dogma ideológico provocou a superação da superstição de uma arte como atitude progressista. O artista compreendeu que progressismo significa, numa análise final, a uma progressão ou evolução interna da linguagem, segundo linhas de fuga que espelham a fuga utópica da ideologia . Se a arte anterior pensava participar na transformação social, através da expansão de novos processos e novos materiais, através do transvazamento do quadro e do tempo histórico da obra, a arte atual tende a não se iludir fora de si própria e refazer o seus próprios passos. (OLIVA, 1981:38)

The failure of political discourse and ideological dogma has caused the superstition of art as a progressive attitude to be overcome. Artists have realized that the principles of progressist thoutght can be reduced, in the final analysis, to an internal progression or evolution of languages along lines of escape which parallel the utopian escape of ideology. The art of the immediate past sought to take part in social change trough the expansion of new processes and new materials, moving away from painting and from the static time of the work. Present art tends to discard illusions of what lies outside itself, and to turn back on its footsteps. (OLIVA, 1981:38)

            A visão apresentada acima por Oliva traduz as inquietações do homem pós-moderno, decorrentes da crise de legitimidade dos ideais modernos de progresso, de razão e de superação. Fala-nos de um artista que não almeja atitudes heróicas, e que não crê que sua obra tenha um caráter excepcional ou que possa a vir acarretar alguma transformação que não a de questões intrínsecas da pintura.

É um trabalho intencionalmente sem caráter, sem atitudes heróicas que não lembram situações exemplares. Ao invés, apresenta pequenos eventos relacionados com a simplicidade individual e circunscrita por aventuras misturados com ironia e sutis desapegos.(OLIVA,1981:39)

The work intentionally lacks character, it does not recall exemplary situations. Instead, it presents small events related to individual sensibility and circumscribed by adventures laced with irony and subtle detachment.(OLIVA,1981:39)

            Bonito Oliva salienta mais uma característica da nova imagem: a fragmentação. Esta característica está de certa forma atrelada ao ecletismo, pois resulta também do revisitar imagens do passado em todas as direções temporais e genealógicas, numa investigação móvel e movediça. O fragmentário da obra se dá tanto no plano formal, quanto no temático.

Trabalhar em fragmentos significa preferir as vibrações da sensibilidade ao conteúdo ideológico monolítico. Essas vibrações são necessariamente descontínuas. ...Os fragmentos são sintomas de um êxtase de dissociação. São signos de um desejo de mutações contínuas.

Working in fragments means preferring the vibrations of sensibility to monolithic ideological content. These vibration are necessarily discontinuous. …Fragments are symptoms of an ecstasy of dissociation. They are signs of a desire for continuous mutation.
(OLIVA,1981:38)

            Neste ponto Oliva aponta para aspectos da obra que traduzem a condição do sujeito da pós-modernidade que não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente e diferencia-se do sujeito da modernidade que ainda tem um núcleo ou essência interior, o "eu real" que se modifica no constante diálogo com os mundos culturais 'exteriores" e as identidades que esses mundos oferecem,(Hall,2001). A identidade do sujeito da pós-modernidade, segundo Hall (nota 20), torna-se uma "celebração móvel"que se forma e transforma-se de acordo com a maneira como somos representados nos diferentes sistemas culturais.

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. ...A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente.(HALL,2001:13)

            É através do caráter descritivo e decorativo que a imagem concebida pelo artista da transvanguarda atinge uma neutralidade. A imagem fica liberada de suas conotações originais, deixando de condensar um significado estrito em si próprio, revelando o aspecto declarativo de uma presença menor. A descrição possui a capacidade de amortizar a carga semântica da imagem; e a decoração, por meio da repetição de adorno, cria uma área de fascinação e indeterminação que dilui o seu próprio significado.

Interessa-nos essa "neutralidade" da imagem como elemento de compactação perceptiva, que, eliminando camadas de primeiros e segundos significados que poderiam desviar a percepção para possíveis leituras subjetivas parciais, dirige a obra imediatamente, como uma totalidade, para o olhar do espectador... ...A neutralização da imagem é, na verdade, um processo de potencialização perceptiva da imagem, que tem por efeito a compactação da obra...,caracterizando-se como um mecanismo provocativo,agressivo e sedutor da visão.(BASBAUM, 1988:44)

            O funcionamento interno da imagem se dá através da neutralização de seu significado, resultando na equalização de elementos abstratos e figurativos. A nova arte não atende à expectativa de veicular um significado, alcançando autonomia descritiva dos estados internos de sensibilidade sem implicar em condição psicológica. (OLIVA,1981:39) Oliva comenta também, a presença da ironia e a vê numa posição metonímica (habilidade de mover significados entre as partes e o todo), livre de sua função simbólica. A ironia aparece como um componente explícito e implícito na obra.

            Estas obras dos anos 80 possuem uma heterogeneidade intencional no que concerne à cor e material, figuração e abstração.(OLIVA,1981:42)

... a obra possui uma inconstância interna que surge do uso volúvel da linguagem, isto é, dos fragmentos que irão formar a constelação orgânica final. Ela combina calor e frio, concreto e abstrato, dia e noite numa intertextura atemporal permanente. (OLIVA,1981:43)

… work possesses an inner inconstancy which arises from a volubile use of language, that is , from fragments which go to make up the final organic constellation.

            Oliva celebra o retorno à pintura : A desmaterialização da obra e a impessoalidade na execução que caracterizam a arte dos anos 70, de acordo com uma evolução rigorosamente duchampiana, encontram um restabelecimento do manual no prazer da execução que reintroduz na arte o prazer da pintura. E é também o caráter hedonista das obras dos 80 que Oliva enaltece. Provavelmente, foi por este viés, que estas obras atingiram proporções incontroláveis de penetração no mercado. Havia um mercado ávido por mercadoria sim. Mas se esta mercadoria não fosse sedutora, fosse cinzenta e nos fizesse lembrar constantemente do desencanto moderno, teria obtido a receptividade do mercado? Teria sido um bom instrumento nas mãos dos formadores de opiniões?

            Secularização

            Suzi Gablick apresenta sua crítica e desconfiança ao ressurgimento da pintura nos anos 80, centrando seus comentários na obra e na figura de Julián Schnabel. Comenta a ascensão vertiginosa da carreira deste artista, mostrando-nos com dados numéricos que suas obras, em 1977, eram vendidas ao valor de 3.000 dólares e nos anos oitenta passam a valer cerca de 60.000 dólares. Maria Lúcia BUENO ( 1999:255), comenta que o processo desencadeado por Oliva atingiu proporções que escaparam ao próprio controle do crítico.

... foi Nova Yorque o cenário da explosão. Os artistas identificados com o movimento - particularmente David Salle, Erich Fischl, Robert Longo, Julian Schnabel e Jean Michel Basquiat -, além de consolidarem sua legitimidade, expandiram-no do reduto artístico para a esfera social, transformando-se em 'estrelas' da noite para o dia. A seguir, promoveram uma verdadeira revolução no campo artístico internacional, subvertendo suas regras e valores, que derivou na implosão da vanguarda.

            Tanto a figura de Schnabel quanto sua obra alcançaram grande destaque nos anos 80, entretanto, causavam mal-estar a muita gente, inclusive a seus admiradores. Si, como mucha gente cree, Schnabel es un diapasón que marca las pautas de nuestra época postmoderna, ¿por qué el mero hecho de mencionar su nombre provoca tantos sentimientos de incomprensión y antipatía? (GABLICK, 1987:82). Paul Wood faz seu relato a respeito de Schnabel:

Juntamente com o seu enorme sucesso de mercado (e algumas críticas elogiosas) o trabalho de Schnabel também foi objeto de críticas hostis. Ele foi censurado por autopromoção, antintelectualismo e 'canibalismo cultural', e também por negatividade, por transmitir uma mensagem de passividade frente à cultura mercantil contemporânea. (WOOD, 1998:235)


            Gablick vê o artista dos anos 80 muito comprometido com o sistema das artes. Ele não protesta, nem busca um valor moral; segue de acordo com as exigências do mercado desde que os mecanismos de poder lhes sejam úteis. Está falando da premissa básica do capitalismo avançado, onde tudo é mercadoria, inclusive arte, política e pessoas.

La creciente dependencia de los artistas en un mundo del arte mercantilizado y manipulado por profesionales ha conseguido que éstos pierdan la capacidad de actuar de forma autónoma y de llevar una vida creativa. Este cambio se dio espontáneamente, nadie lo instigó, no fue deliberado. Ocurrió porque el capitalismo avanzado, debido a su ética de consumo en masa, debilitó la capacidad que siempre tuvo el arte para transmitir unos esquemas auténticamente éticos. (GABLICK,1987:114)

            Gablick comenta que o trabalho de Schnabel não é radical em suas proposições, nem provoca inquietação, uma vez que o mundo cultural já está acostumado a ver de tudo. ¿Acaso aquellos que se sienten incómodos ante las obras de Schnabel, encuentran que la inexplicable intrusión de estos temas religiosos es un indicio de un modo pictórico indefinido y falseado? ¿O es más bien que no aprueban al artista?(GABLICK,1987:83)

            Para Gablick, soa como provocação o fato de alguns artistas como Sandro Chia , Francesco Clemente e Mimo Paladino, utilizarem temática religiosa em suas obras. Questiona se estes artistas, ao adotarem temáticas religiosas, fazem-no por questão de estilo ou por acreditarem que a arte poderia voltar a ter um valor místico.(84) Penso que os motivos que levam estes artistas a adotarem temáticas religiosas não, necessariamente, necessitam ser de crença. Creio que possam relacionar-se intensamente com esta temática, sem que seja exclusivamente por identificação. A referência pode perpassar por uma relação de estranhamento, ou por neutralidade, ou por repulsão. São códigos acionados na concepção e leitura de obras contemporâneas, dos quais a autora parece não fazer uso com muita freqüência.



Sandro Chia - L Ammazzapret , 1983 óleo sobre tela 160,6 x 180,3 cm


Clemente - Untitled, 1983 óleo sobre tela 200 x 236 cm


Mimo Paladino - Tango , 1983 óleo sobre tela com moldura pintada e assemblage 143 x 143 cm


            Ao comparar a representação de Deus feita por Michelangelo no Renascimento e a representação feita por Schnabel, aponta para o ato sacramental que consiste o primeiro e para a carência de profundidade espiritual do segundo. Este é um dos aspectos no qual Gablick sustenta sua crítica; no fato de o artista dos 80 não vivenciar aquilo que está pintando e tirar os símbolos de seu contexto temporal e espacial, para ficar somente com o que é pictórico. Gablick questiona qual seria o valor simbólico que estas imagens podem ter se estão privadas de sua relação ou lealdade para com uma realidade transcendente. (GABLICK, 1987:84).

la paradoja del arte de Schnabel, y su influencia sobre nosotros se debe a que, con frecuencia, parece aspirar a una dimensión divina: y esto nos obliga a plantearnos los motivos por los que surge este arte. Si el arte de Schnabel no está impulsado por motivos religiosos? Qué razones puede haber hoy día para representar a San Francisco , Cristo e a Dios? (GABLICK, 1987:85)

            Em sua opinião, a importância da concepção sacramental (nota 21) na arte se dá, à medida que recupera a função que a arte sempre teve de ser mediadora entre Deus e o homem. Aponta para uma sociedade onde os valores materiais e racionais são cada vez mais exaltados e, em proporção direta, os valores espirituais vão desaparecendo, ficando a arte afastada do mito e da concepção sacramental. Sem dúvida, a sociedade descrita acima por Gablick não representa o melhor modelo social que se possa ter. É provável que a arte que Gablick acusa de anti sacramental fosse a única viável naquele momento, no sentido de que estava "estampando a cara " daquela sociedade. Levemos em conta que a arte dos anos 80 não tinha ilusões em relação ao seu poder de alcance e esteve, justamente, traduzindo o desencanto de uma sociedade que não acreditava mais num progresso onde o discurso ideológico falhou. DELGADO comenta a postura do artista dos anos 80:

El formalismo de que se ha acusado a la post modernidad es consecuencia de la separación entre ética e estética. Por tanto, el nuevo arte aparece vacío de contenido moral al renunciar a los valores universales. Esta renuncia a aquella ingenuidad es celebrada por sus defensores como una gran liberación. Para sus oponentes, modernos o post- modernos, es, simplemente vaciedad de contenido. Vaciedad de contenido moral que rechaza para el arte cualquier dimensión de trascendencia. El arte no asume ya connotaciones culturales universales ni valores sociales. (DELGADO,89:115)

            Gablick acredita que podemos e devemos buscar resultados morais na arte assim como buscamos resultados estéticos e sociais e que estes valores estreitamente ligados (91). "Cuando hablamos de calidad moral, lo que nos interesa no es el producto acabado (que vemos ante nosotros), sino los valores interiores que lo animan (valores que no podemos ver)." (GABLICK,1987:91)

La meta de la vida estética es la satisfacción propia; pero si rechazamos las ambiciones conformistas y establecemos una conducta de devoción espiritual, nuestra forma de vida adquiere un sello ético. (GABLICK, 1984:77)

            Suzi Gablick critica o fato de que a arte atual abstém-se de qualquer obrigação ou propósito social. A participação ativa do artista nos rumos da sociedade, no período que antecede a Primeira Guerra Mundial, fica reduzida nos anos 70 a uma aceitação passiva de que a arte nunca mudaria o mundo. "En la época del post-modernismo, el heroísmo y el gran arte no están de moda." (GABLICK,1987:70) Gablick quer resgatar o mito (nota 22) do fazer artístico. A obra como sendo um mediador entre o artista e o sagrado. Tal como evoca Durand (nota 23), o mito vem antes da história, legitimando-a; sem as estruturas míticas a compreensão da história não é viável.

...es el mito el que, de alguna manera, distribuye los papeles de la historia, y permite decidir lo que configura el momento histórico, el alma de una época de la vida. El mito es el modulo de la historia, y no a la inversa. (DURAND 1993:29)

            Em seu discurso Gablick centra-se na secularização ( perda do espiritual no mundo) e no resgate de uma função social para a arte. Relaciona a secularização com o processo de racionalização decorrente do desenvolvimento da ciência e da tecnologia que mutilou o aspecto divino, mítico e sacramental na nossa sociedade.

            Finalizando

            Em seu artigo Bonito Oliva enaltece a figura e a obra do artista dos anos 80 e aponta, unicamente, para a relação daquele com sua produção artística. De certa forma, está sublinhando uma das características que pontuou em seu discurso: a subjetividade do artista acima de tudo. Em seu artigo, que data de 1981, Oliva se abstém de comentar questões como inserção das obras da transvanguarda no mercado de arte.

            Suzi Gablick, por outro lado, mostra-nos aspectos deste artista dentro do sistema das artes. Fala-nos do artista como um profissional que, conhecendo o percurso das artes, faz uma escolha nada ingênua por dita forma de expressão, a transvanguarda. Em relação à esta escolha, Gablick sugere haver uma estratégia por parte deste grupo de artistas que, de maneira oportunista, encarnam o perfil do artista e concebem o tipo de obra que o mercado estaria buscando. A difusão do consumismo decorrente da globalização faz com que este mercado assuma características mais "agressivas" e opere de forma mais contundente, contribuindo para o que Hall denomina de efeito de "supermercado cultural".

No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como "homogeneização cultural. (HALL,2001:75)

            É o panorama instaurado na pós-modernidade, onde tudo é vendável, de que nos fala também Lyotard onde, por exemplo, no campo da ciência, esta perde o seu valor intrínseco, passa a ter um "valor de uso" para depois atingir um valor de troca, transformando-se em mercadoria.

            Os conceitos de neutralidade da imagem, nomadismo e ecletismo, formulados por Oliva, batem de frente com a questão da temática no discurso de Gablick, à qual ela denomina de saque eclético. Gablick busca transcendência e conteúdo moral em imagens que, intencionalmente, estão esvaziadas de carga semântica. Ao usar a iconografia religiosa, o artista da transvanguarda está se apropriando da imagem sagrada, no mesmo sentido que os artistas da pop arte apropriaram-se das imagens dos meios de massa. Penso haver "espaço" para uma leitura onde o artista da transvanguarda não, necessariamente, tenha que ser visto ou como um herege, ou como um religioso engajado. Num mundo saturado visualmente, onde processamos imagens o tempo todo, por que somente as que pertencem ao universo religioso, devem ser "intocáveis"?

            O distanciamento de mais de duas décadas do que muitos consideram o início da pós-modernidade, permite-nos fazer uma leitura mais crítica dos anos 80. E o fato de não estarmos mais mergulhados, naquele momento de intensas mudanças em diversos âmbitos da sociedade e de já haver se instaurado um "depois", diminui ansiedade daqueles que botaram a geração 80 contra a parede. No discurso crítico de Gablick, ainda que coerente e correto, encontro esta ansiedade, mesmo que não explicitada, de saber para onde iria aquele "barco à deriva". Até quando a palavra de ordem seria o "vale tudo" ? É como se Gablick fizesse a constante pergunta: até quando teremos de conviver com um artista que se abstém de sua função moral?

Lo que hasta ahora ha probado la post-modernidad es que algo puede ser varias cosas a un tiempo, e incluso puede transformarse en su opuesto. Indudablemente, la cuestión principal ahora consiste en saber si la pintura neo-expresionista es otro síntoma más de la apremiante necesidad de desencanto que tiene nuestra sociedad, o si por el contrario ( cuando se haya consolidado), podrá llegar a restaurar un modo de conciencia que, hoy por hoy, está muy debilitado. (GABLICK,1984:115)

            Bonito Oliva parece aceitar com mais tranqüilidade os transcursos cíclicos que a arte percorre, geralmente demarcada por décadas. Em entrevista (nota 24), no ano de 1996, ao ser argüido sobre o momento artístico da Itália, se haveria um movimento comparável à arte povera ou à transvanguarda, Oliva respondeu:

Não, mas isto é normal. A arte tem um respiro biológico. Não pode, como a Fiat, mudar de modelo todo o ano. Vivemos em uma época de transição que não permite a ligação dos artistas como um slogan. Hoje existe um retorno à responsabilidade moral do artista. Se a arte quiser ter um papel político, deve produzir formas capazes de propor a resistência moral do artista contra o caos. (OLIVA, 1996)

             Nesta mesma ocasião, sendo questionado sobre a importância do papel político do artista em um mundo em que as relações sociais e éticas estão degradadas, responde:

Nunca como neste momento a arte pode recuperar uma função social fundamental. Os modelos caíram, e a arte, com sua capacidade de ser virtualidade, probabilidade e potencialidade, poderá dar estímulos abertos para um campo de reflexão. Esta é a diferença entre arte e televisão. A televisão desenvolve imagens frontais, estereotipadas, modelos autoritários para a massa. A arte não produz autoridade, mas uma atmosfera moral que permitirá ao espectador em primeira pessoa, um campo de indeterminação prolífico e criativo. (OLIVA, 1996)

            Este depoimento mais recente de Oliva sobre questões dos anos 90, onde ele fala de um retorno à responsabilidade moral do artista, sinaliza a possibilidade de que, para a geração dos 80, ele não tenha considerado profícuo exigir este tipo de consciência. Talvez o entendimento que tenha tido daquele momento foi o de que o posicionamento político possível, para o artista dos anos oitenta, era a indiferença (nota 25).

            As colocações de Oliva sobre os artistas dos 90, aproxima-se dos conteúdos reivindicados por de Gablick aos artistas dos 80. Se olharmos ao longo da história da humanidade e das artes, vemos que seu percurso é cíclico e cheio de altos e baixos. Vejo como saldo positivo dos anos oitenta, além do debate que se instaurou em torno das questões de pintura e a grandiosidade de algumas das imagens criadas por alguns destes artistas, a inclusão de questões referentes à cultura de massa na reflexão teórica deste período. Observo que os conceitos da pós-modernidade transitam por algumas destas obras, salientando a sua sincronia para com seu tempo.

            Seguindo a reflexão introdutória que Gablick utiliza em seu livro: ...?Há triunfado el arte moderno o há fracado? (nota 26)... poderíamos perguntar-nos : A geração oitenta fracassou?

            Tendo apreendido as premissas da pós-modernidade: a não linearidade, a pluralidade das possibilidades, a inexistência de uma verdade absoluta, a característica fragmentária do sujeito não seria inadequado a formulação de questões que busquem, unicamente, erro ou acerto como possibilidades de resposta?


Notas

nota 1 Ricardo Basbaum é artista plástico, professor do Departamento de Educação Artística da Universidade do Rio de Janeiro, co-editor da revista de arte item e co-diretor do Espaço Agora-Capacete. retorna ao texto

nota 2 Maria Lúcia Bueno é doutora em ciências sociais. Atualmente é professora no programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unicamp. retorna ao texto

nota 3 Estados Unidos, Itália, Alemanha, Inglaterra, Áustria, França, Suíça. Holanda, Bélgica, Suécia, Ioguslávia, Canadá, Austrália, Israel, Argentina e Espanha. (BUENO, 1999:255) retorna ao texto

nota 4 A matéria : "Mestre Expressionista" da Revista Veja de 25 de dezembro de 1985, com o subtítulo: "Aos 71 anos, Iberê Camargo conquista definitivamente o seu posto na arte brasileira", confirma a situação acima descrita. Para conhecer mais sobre este artista gaúcho, consultar: Iberê Camargo / textos de Ronaldo Brito; introdução de Rodrigo Naves; DBA Artes Gráficas, 1994. retorna ao texto

nota 5 Entre estas exposições encontram-se: "Entre a Mancha e a Figura"(1982,RJ), "À Flor da Pele"(1983,RJ), "3x4 Grandes Formatos" (1983,RJ), "Como vai você Geração Oitenta?"(1984, RJ). Para saber mais sobre estas exposições ver Ricardo BASBAUM em seu artigo na Revista Gávea no.6, onde ele comenta estes eventos e os textos produzidos pelos críticos da geração 80: Frederico de Morais, Roberto Pontual e Marcos Lontra. retorna ao texto

nota 6 São eles: Antônio Dias, Cildo Meireles, Ivens Machado, Jorge Guinle, Leda Catunda, Leonilson, Roberto Magalhães, Sérgio Romagnolo, Tunga e Victor Arruda. retorna ao texto

nota 7 O comentário de Frederico de Morais acerca da vinda de Bonito Oliva ao Brasil em fevereiro de 1986, encontra-se em seu livro: Cronologia das Artes Plásticas no Rio de Janeiro - 1916-1994, publicado em homenagem aos 40 anos de sua atuação como crítico e historiador de arte. Frederico foi considerado um dos críticos e propagador da Geração 80 no Brasil. retorna ao texto

nota 8 Grossmann é crítico e curador, e atual vice-diretor do MAC da USP. retorna ao texto

nota 9 Dora Longo Bahia, artista plástica paulista e professora da FAAP, contribuiu com depoimentos em entrevista concedida à autora deste artigo em 29/09/2001, durante o "1o. Circunlóquio - Encontro de Artes da UDESC - CEART 2001". Dora começou a atuar em arte nos anos 80, sem no entanto, fazer parte da chamada "Geração 80". retorna ao texto

nota 10 Ronaldo Rosas Reis é Doutor em Comunicação e Cultura e Professor do Programam de Pós-Graduação em Comunicação Imagem e Informação da UFF. retorna ao texto

nota 11 Leda Catunda, Leonilson, Jorge Guinle, Ângelo Venosa, Daniel Senise, Casa 7 ( Carlito Carvalhosa, Fábio Miguez, Paulo Monteiro, Nuno Ramos e Rodrigo Andrade), entre outros artistas. Para conhecer mais nomes, consultar catálogos da nota 1. retorna ao texto

nota 12 Paul Wood é professor de História da Arte na Open University. retorna ao texto

nota 13 Renato De Fusco é historiador de arte de nacionalidade italiana. retorna ao texto

nota 14 O historiador de arte espanhol, Alfonso de Vicente Delgado, adota a seguinte distinção, exemplificando com dois artistas: Novos Selvagens alemães (Baselitz, Kiefer), Transvanguarda italiana (S. Chia, E. Cucchi) e a Nova Figuração novaiorquina (J. Schnabel, D. Salle) retorna ao texto

nota 15 Frederic Jameson, americano que trata da pós-modernidade como "um conceito e periodização" cuja principal função é correlacionar a emergência de novos traços formais da vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova forma econômica."(JAMESON apud Bueno) Pastiche: "transformação da realidade em imagens"(JAMESON apud Bueno) retorna ao texto

nota 16 "O pastiche, transformando a realidade em imagens, é tratado em contraposição ao modo de operação da paródia. ...Para Jameson, o pastiche emerge quando a paródia torna-se impossível, quando extinguem-se todos os modelos normativos e a realidade transforma-se em imagens fragmentadas. As imagens circulam desconectadas de sua história.".(BUENO, 1999) retorna ao texto

nota 17 Honnef é sociólogo e historiador alemão. retorna ao texto

nota 18 Antoine Compagnon é Professor de Literatura Francês e Combinada na Universidade de Mans (França) e Columbia (Nova York). retorna ao texto

nota 19 Jean François Lyotard (1924-98) , filósofo francês publicou o livro "A Condição Pós-Moderna", em 1979, no qual analisa a explosão da informática, da cibernética e dos bancos de dados considerando que é a aceleração vertiginosa dos saberes que modifica nossa atual vida cotidiana. (JAPIASSÚ,1996:169) retorna ao texto

nota 20 Stuart Hall é professor da Open University, Inglaterra. Foi um dos fundadores do importante Center for Contemporary Cultural Studies da Universidade de Birmingham. retorna ao texto

nota 21Gablick expõe o termo concepção sacramental como forma de perceber o mundo que tende ao poder divino:Tradicionalmente, los artistas han utilizado el arte como un medio material para alcanzar unos fines espirituales. Mucho sociólogos han señalado que nunca se ha sabido de una sociedad humana que viviese sin una concepción de un orden sobrenatural o de unas fuerzas místicas que rigen los acontecimientos corrientes. Sólo la sociedad occidental moderna se ha propuesto desacreditar lo místico...(GABLICK, 1987:87) retorna ao texto

nota 22 Autores como M. Eliade, Pannikar, Durand e Campbell, abordam a questão do mito. Atribuem ao mito característica tais como: construtor de conhecimento, veículo do símbolo. Apontam também para o mito como transformador do sujeito, e consideram, de acordo com a nova historiografia, que mito é conhecimento, para quem o estuda e para quem o vive. retorna ao texto

nota 23 Durand participou do Grupo de Eranos (Ascona - Suíça , 1933.à 1988). Em 1972, elaborou uma metodologia para análise de texto literário chamado Mitocrítica de Durand. retorna ao texto

nota 24 Entrevista concedida à Folha da Manhã, sob o título: Curador italiano propõe 'diáspora' artística, (redator: Celso Fioravante), por ocasião da 23a. Bienal de São Paulo (1996). retorna ao texto

nota 25 A dissonância que encontro nesta "indiferença", é que alguns artistas dos 80, não estiveram "indiferentes" aos ganhos exorbitantes obtidos naquela "festa". retorna ao texto

nota 26 O próprio título de seu livro: ?Há muerto el arte moderno?, reforça este conceito. Gablick argumenta: ...Y ahora que el pluralismo hace furor, ?acaso el postmodernismo ofrece una posibilidad aún mayor de libertad, o es meramente el resultado de lo que Hegel denomino el falso infinito, que pretende abarcalo todo y no es en realidad más que una complejidad aparente que oculta una ausencia de sentido? (GABLICK,1984:11) retorna ao texto

início


Referencia Bibliográfica

Livros:


BARTHES, Roland. Mitologias. Ed. Bertrand Brasil S.A. 9ed.Rio de Janeiro,1993.

BUENO, Maria Lúcia. Artes Plásticas no século XX: modernidade e globalização. Ed. Unicamp. Campinas, 1999.

BULHÕES, Ma. Amélia. As questões do sagrado na Arte Contemporânea da América Latina. Ed. UFRGS, POA 1997.

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Ed. UFMG, Belo Horizonte,1996.

DELGADO, Alfonso de Vicente. El arte de la postmodernidad. Todo vale. Ed. Del Drac, S.A. Barcelona,1989.

DURAND, Gilbert. De la mitocritica al mito análisis. Barcelona. Ed. Anthropos, 1993

FUSCO, Renato de. História da Arte Contemporânea. Editorial Presença. Lisboa, 1983.

GARDNER, James. Cultura ou Lixo? Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1996.

GROSSMANN, Martin in BASBAUM (org.). Arte Contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Ed. Rios Ambiciosos, Rio de Janeiro, 2001.

HALL,Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade - Stuart Hall. DP&A, Rio de Janeiro,2000.

HONNEF, Klaus. Arte Contemporânea. Colônia Ed. Taschen., 1992

JAMESON, Frederic. Pós-modernismo. A Lógica do Capitalismo tardio.São Paulo. Ática, 2000.

JAPIASSÚ, Hilton. Dicionário Básico de Filosofia / Hilton Japiassú, Danilo Marcondes. Jorge Zahar Ed. Rio de Janeiro, 1996.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro. José Olympio, 2000

MORAIS, Frederico Cronologia das Artes no Rio e Janeiro, 1816-1994. Rio de Janeiro. Top Books, 1995

SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-moderno. Ed. Nobel. São Paulo, 1986.

THOMAS, Karin. Hasta Hoy, Estilos de las Artes Plásticas en el siglo XX. Barcelona. Ediciones del Serbal, 1988.

WALTHER, Ingo org. Arte Século XX. Vol. I. Colônia, Taschen, 1999.

WOOD, Paul. Modernismo em Disputa. São Pulo, Cosac & Naify, 1998


Outras Fontes:

CATÁLOGO da 18a. Bienal de São Paulo, 1985

BASBAUM, Ricardo.Pintura dos anos 80: Algumas observações críticas. Gávea no.6. R Revista do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil. Rio de Janeiro. PUC, 1988

OLIVA, Achille Bonito - http://www.achillebonitoliva.com/forum/trans.htm

GEERTZ, Clifford - Harvard University Press. banco de dados disponível em<http//www.hup.edu/catalog/GEEAFT.html acesso em : 08 mar.2001

GEERTZ, Clifford- Definitions of Culture. banco de dados disponível em<http//www.wsu.Edu:8001/vcwsu/commons/topics/culture-definitions/geertz-text.html acesso em : 08 mar.2001

REIS, Ronaldo Rosas. Conformismo pós-moderno e nostalgia moderna - As ideologias estéticas dos anos 80. Ciberlegenda, no. 1,1998. - http://www.uff.br/mestcii/ronaldol.htm

início