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A arte de encontrar aquilo que não estamos procurando

Elida Tessler


O que faz o artista na Universidade? Esta é a questão que destaca-se de um mar de outras perguntas que nos assaltam cotidianamente, quando ocupamos zonas de intersecção, fazendo coincidir uma produção particular com um interesse institucional. Como as águas de volumosa onda que bate na rocha, os respingos são muitos, e o som, à distância, é silêncio.

O que faz o artista na Universidade? E desde quando? Certamente esta é uma pesquisa que deve ter sido ou estar sendo realizada por alguns de nossos colegas, e sobre a qual não tenho muitas notícias (1). Assumo aqui uma posição de caráter mais biográfico, confessional mesmo, tentando contribuir para uma discussão necessária, também em busca de algumas respostas.

Gostaria de esclarecer que, no meu caso, as zonas de intersecção sobre as quais me referi são as seguintes:

1.manter uma produção própria, dentro de uma linha de pesquisa vinculada aos processos de criação em arte contemporânea. Esta linha abrange as pesquisas que consideram a obra a partir do ponto de vista de seu processo de instauração. Aborda o trabalho de pesquisa em atelier, a partir de procedimentos tecnicos, das especificidades dos materiais e da relação obra/conceitos operacionais.

2.atuar como professora na graduação e pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

3.ter fundado em 1993 e estar coordenando até o presente momento, junto com o artista plástico Jailton Moreira, o Torreão - espaço de produção, reflexão e pesquisa em arte contemporânea - sem nenhum vínculo institucional.

Todas estas atividades estão, certamente, intimamente relacionadas, dependentes umas das outras para sua plena realização. Além destes pontos, uma permanente busca de não mais separar os momentos de produção e reflexão, acreditando que há muito tempo os limites entre uma e outra prática, no contexto das artes visuais, já apagaram-se.

O que é muito instigante é o fato de sabermos de antemão que as respostas geralmente não estão aonde as procuramos. As perguntas, sim, estão em todos os lugares. Esta dedução é muito bem apontada por Cildo Meireles, em um trabalho intitulado "Resposta" (2). Trata-se de uma caixinha do tipo de guardar jóias ou placas comemorativas. Em sua tampa, está fixada uma plaquinha com a inscrição gravada em letras maiúsculas: RESPOSTA. Abrimos a caixa em busca dela e encontramos outra placa parafusada na superfície interna do estojo : NÃO ESTÁ AQUI O QUE VOCÊ PROCURA. Devo dizer que esta proposição de Cildo Meireles, que eu já havia visto em uma exposição, ocupou grande parte de meu interesse, no momento em que preparava um curso sobre a presença do objeto na arte brasileira. Me parece que a visualização de tal imagem permitiu-me configurar um pensamento até então completamente disforme, sem estrutura, em relação ao olhar. No mínimo, três questões saltaram de imediato quando da visualização deste trabalho. A primeira é, evidentemente aquela que procura o lugar: Onde está o que procuramos? A questão do lugar é sempre essencial para a produção em artes visuais. Podemos afirmar, inclusive, que arte é a criação de lugares. A segunda questão remete diretamente ao objeto: O que é que estamos procurando? O trabalho de Cildo não aponta o objeto, porém, este logo desenha-se nos olhos do espectador transfigurado em outra indagação: O que você está procurando? Eis o terceiro tópico questionador: E se não achamos o que estamos insistentemente a procurar? Temos aqui um outro foco de interesse, e que tem sido o elemento norteador do que venho produzindo nestes últimos anos: a questão da perda. Podemos pensar a arte como algo ligado à perda do objeto e à sua reconstituição?

A grande coincidência, e surpresa para mim, é que na mesma época em que eu estava pensando tais questões, durante a arrumação de um guarda-roupas (obrigações rituais após a morte de minha mãe), encontrei no fundo de um compartimento, dentro de um estojo de madeira, uma pequena coleção de vidrinhos com lentes de contato submersas em soro. Em realidade, logo reconheci-as como sendo minhas, aquelas que eu já imaginava sem existência. Minha mãe sempre guardou coisas. Porém, eu não podia supor que todas as minhas lentes de contato usadas durante o período da adolescência, e colocadas fora por mim, ainda estavam lá. Ali, em um fora-de-lugar. Como em um eco da frase de Cildo, escutei: Aqui está o que você não está procurando. Com este achado, finalizei o projeto de exposição "Falas Inacabadas"(3).

"Falas Inacabadas" tem sido quase um conceito operacional em minhas reflexões acerca do que venho produzindo. Antes de ser título da exposição, foi fragmento apropriado de um poema para servir de denominador comum para uma série de "vidrinhos", recipientes que continham água e materiais metálicos. As dimensões variavam, os potes sendo também apropriados do cotidiano urbano. Estes elementos eram apresentados em várias exposições, geralmente em posições de margem. Os mesmos objetos iam e voltavam em caixas, sendo que por vezes, alguns não resistiam aos choques no transporte. Os vidros mantinham suas manchas e oxidações enquanto desenho, e o conjunto era acrescido por outras garrafas ou bacias quando necessário, alguns com líquido, outros com sal grosso, estopa ou gelatina. Neste ano, "Falas Inacabadas" também tornou-se título de um livro, com poemas de Manoel Ricardo de Lima. Dizer agora que eu sempre imaginei esta série de vidros como uma espécie de lente para o meu olhar pode parecer algo forçado, porém foi esta a coincidência que me imobilizou por alguns instantes e que, de certa forma, ofereceu sentido para estes breves pensamentos.

Onde está o que estamos procurando?

Vamos colocar novamente a questão em pauta: O que faz o artista na Universidade? Talvez sua função seja a de criar lugares para as perguntas sem respostas evidentes, assegurando espaço para suas ressonâncias, acreditando no valor de uma pesquisa em torno delas.

O que se observa, porém, é que há esforços desmedidos para ultrapassar antigas questões que acabaram por configurar um contexto marcado por uma esquize, uma fenda criada entre o fazer e o pensar, estando de um lado o artista que cria, e de outro, o acadêmico, o intelectual que articula idéias, teorias e críticas. Acredito que uma das alternativas (não a única) do artista plástico contemporâneo é a pesquisa, onde a estratégia seja aquela capaz de reunir as atividades de produção e de reflexão(4). A Universidade gera ambiente propício para o que é fundamental em nosso campo de trabalho: a interdisciplinariedade, promovendo (ou assim deveria ser) ampla discussão e possibilidade de intercâmbios. A Universidade é também lugar de formação de artistas, e a experiência de uns têm ali espaço de transmissão, o que não pode ser nunca esquecido ou menosprezado. Como nos disse Geraldo Orthof: "As artes plásticas são comprovadamente uma forma de investigação intelectual e sensorial de raciocínio, intuição, e um modo específico de comunicação. É sob estes aspectos que as artes plásticas devem ser consideradas, ensinadas e respeitadas como um campo sério e original de pesquisa".(5)

Porém, o que vem a ser a pesquisa em artes plásticas? Possui ela uma metodologia específica? São vários os elementos que deveriam ser aqui abordados, mas citaremos somente alguns pontos importantes a serem levados em consideração. Em primeiro lugar, esta metodologia está em construção e depende da comunicação estreita entre os pesquisadores para sua consolidação e legitimação. A idéia de que o artista está em formação permanente também é muito importante, e toda a sua atividade configura-se evidentemente como pesquisa: esboços, anotações, visitas a outras exposições, leituras, visualização de vídeos, entre outras formas de investigação. O que é preciso, sem dúvida, é um processo de sistematização, de transformação do caráter intuitivo para o científico Outro elemento a ser lembrado é que no século XX, observou-se a grande importância dos escritos de artistas. A história da arte sempre nos trouxe tratados, depoimentos, cartas e outras formas de registro de idéias e pensamentos dos artistas, mas em período mais recente, as publicações se multiplicaram, e a interdisciplinariedade também fez com que o discurso do artista encontrasse lugar na produção científica, ou acadêmica. Creio que este é um referencial importante, e não pode ser esquecido ou considerado elemento secundário na investigação. Ainda quero dizer que parece-me sempre mais interessante partir de obras, e não de uma idéia geral, de um tema. As obras de arte não são uma ilustração, mas o lugar onde as idéias se formam. Evidentemente, os resultados de pesquisa devem ser apresentados com textos permeados de reproduções, incluindo, se possível, esboços e anotações do artista. Para os artistas, a melhor maneira de apresentar seu trabalho é uma exposição.


Atualmente, desenvolvo um trabalho de pesquisa intitulado "A passagem do tempo e suas reverberações visíveis: a experiência do instante" O projeto está inscrito no Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS, tendo sido iniciado com uma bolsa-pesquisa MAB-MinC. Inserindo-se dentro do contexto universitário, onde minha atuação abrange os cursos de graduação e pós-graduação em artes visuais, em disciplinas da ênfase de história, teoria e crítica (disciplinas ditas teóricas, portanto) e da ênfase poéticas visuais (disciplinas ditas práticas, desenvolvidas em ateliês sem abrir mão de produção de textos) esta pesquisa configura-se como um instrumento necessário para a ampliação das possibilidades de intersecção entre pesquisa artística e a metodologia científica, no que toca o desenvolvimento da pesquisa em artes no Brasil.

Sabe-se que em nosso país muito já se reivindicou uma legitimação do artista enquanto pensador, enquanto produtor de cultura, e as décadas de 60 e 70 são a prova maior de que o artista teve que estar extremamente afinado com o seu tempo cultural, político e social, utilizando as mais variadas formas de linguagem para dar prosseguimento as suas idéias.

Hoje, fala-se muito na escassez de tempo. Já não temos tempo. Não há mais tempo para fazermos aquilo que gostaríamos de fazer. Este é o discurso comum, nos mais diversos âmbitos da sociedade. E nas artes plásticas, como esta questão do tempo entraria enquanto fator de mudança neste início de século? Para além das tecnologias avançadas e todo o auxílio da informática na configuração de imagens, como a questão do tempo vem sendo trabalhada pelos artistas contemporâneos? Como princípio metodológico, tomo a minha própria produção como elemento central de pesquisa, contextualizando-a e criando relações, obviamente, com a produção de outros artistas.

Gostaria de enfatizar mais uma vez o caráter de trânsito, de circulação entre limites. Dentro do quadro da pesquisa, desenvolvi um trabalho de ateliê pesquisando as reações de determinados materiais que, conjugados a outros, são capazes de registrar a passagem do tempo, registrando nossas marcas cotidianas. Os trabalhos concentravam muitos elementos ligados à idéia de restos, de resíduos, de vestígios. Os materiais com os quais trabalho são retirados de nosso dia-a-dia, e, na época eram escolhidos a partir de um denominador comum: a possibilidade de impregnação da ferrugem, decorrente da oxidação dos diferentes materiais metálicos utilizados.

O que é que estamos procurando?

Se pensamos a arte como algo ligado à perda e à restituição, poderíamos dizer que nem sempre é um objeto palpável nosso alvo de procura. Algo buscamos É este ato que nos move enquanto artistas, e também enquanto "colecionadores de olhares desaparecidos", tomando emprestado aqui um fragmento de diálogo de "Um olhar a cada dia", de Theo Angelopoulos. Neste filme, um cineasta desiste temporariamente de realizar suas próprias filmagens para sair à procura de três rolos de filmes nunca antes revelados.

Vamos arriscar a indicação de que é um olhar que nos faz falta, pois é dele que dependemos para continuar a produzir arte. Algo procuramos, é evidente, pois precisamos sair de um estado de inércia diante de nossas perdas cotidianas, de nossa impotência face a elas. Porém, encontramos sempre uma resposta em deslocamento: Não está aqui o que você procura". Como no filme, onde após várias tentativas fracassadas de capturar imagens do real, com a câmera fotográfica, nosso personagem sai atrás dos filmes, sobre os quais ele não sabe muita coisa, apenas algumas referências de datas e do modo como foram realizados. O trânsito em busca do que se considera perdido para sempre é o que nos faz valorizar uma obsessão.

Definir o que vem a ser a pesquisa em artes plásticas não é problema. Dar forma a algumas idéias, seja em desenho, pintura, escultura, fotografia, instalações ou qualquer outra categoria de arte também não é problema. O difícil é não deixar-se intimidar pelos impasses, até encontrar a boa articulação entre projeto de pesquisa e a sua realização, unindo produção e reflexão, contribuindo para o desenvolvimento de um campo de trabalho ainda recente entre nós e por poucos reconhecido.

Procuramos então um problema digno de nossos esforços de investigação. Para entrarmos diretamente no campo da metodologia em artes plásticas poderíamos começar dizendo: o problema é a nossa matéria prima. Encontrar um bom problema é a nossa primeira tarefa.


Comentando ainda acerca da zona de intersecção apontada no início deste texto, gostaria de me apropriar da estrutura de uma colocação de Louise Bourgeois(6) para ali colocar um pensamento formalizado por mim, após o término da montagem de minha última exposição, intitulada Falas Inacabadas. A artista assim coloca:

"No início, meu trabalho era o medo da queda.
Em seguida, tornou-se a arte da queda.
Como cair sem se machucar.
Depois, a arte de estar aqui, neste lugar."

Parafraseando-a, então, ouso dizer:

No início, meu trabalho era o medo da perda.
Em seguida, tornou-se a arte da perda.
Como perder sem arrepender-se.
Depois, a arte de encontrar aquilo que não estou procurando.

 

NOTAS

1 Não podemos deixar de lembrar aqui dos mais de dez anos de trabalho da ANPAP - Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - e suas publicações. Gostaria também de registrar a realização de um colóquio bienal, cujo tema é "Metodologia de Pesquisa em Artes Visuais - A pesquisa na Universidade", já em sua terceira edição. Este evento foi organizado dentro de um acordo entre as seguintes instituições: Universidade de Paris I, Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Escuela de Arte PUC-Chile. A publicação dos trabalhos apresentados na última edição, realizada em Porto Alegre em 1997, cuja organização foi de responsabilidade da equipe do PPG-Artes Visuais do IA-UFRGS, está no prelo.

2 "Resposta" - s/data, 4x10x4 cm. Este trabalho foi apresentado na exposição Imágica Palavra, realizada no MAC-USP em outubro/novembro 1987.

3 A expressão FALAS INACABADAS foi apropriada de um poema de Daniela Tessler, intitulado "Show de versos-inversos", escrito em julho de 1993. A exposição FALAS INACABADAS teve apresentação no ALPENDRE - Casa de Arte, produção e pesquisa, em Fortaleza. De 11 de maio a 11 de julho de 2000.

4 Este tem sido o objetivo do Programa de Pós-Graduação de Artes Visuais - Mestrado e Doutorado, do Instituto de Artes Visuais da UFRGS.

5 ORTHOF, Geraldo. A Universidade e a formação do artista" Humanidades Brasília, UnB, n°42 -p.6-12

6 in: BERNADAC, Mari-Laure. Louise Bourgeois, Paris, Flammarion,1995. P.156

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