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Texto publicado orinalmente na Revista PortoArte Número 17 de 1998

EVGEN BAVCAR: silêncios, cegueiras e alguns paradoxos
quase invisíveis

Elida Tessler


Desde que ouvi falar pela primeira vez em Evgen Bavcar, fiquei completamente intrigada por sabê-lo fotógrafo e cego. Eu, como provavelmente muitas outras pessoas que tomaram contato com o seu trabalho, custei a aceitar a possibilidade da associação entre um homem que não vê e a produção de imagens. Esta primeira dificuldade traduz um estado de ignorância latente que devemos combater quando estacionamos muito rente ao fio da calçada da obviedade, principalmente quando queremos abordar assuntos referentes às artes visuais. Os olhos nem sempre estão dispostos a nos fazer ver para crer.

Devo ao próprio Evgen Bavcar a coragem de enfrentar meus limites e me lançar em uma aventura que ainda não terminou. A partir da leitura de seus escritos, da análise da produção de outros artistas, principalmente da francesa Sophie Calle, da leitura de "Ensaio sobre a cegueira" de José Saramago, de alguns filmes cujos diretores são muito sensíveis ao tema da percepção através do olhar e, de modo definitivo, olhando as fotografias realizadas por Bavcar, em sua casa numa tarde quente de verão(1997), onde pudemos conversar, creio que posso me autorizar a tecer algumas reflexões em torno de nossas cegueiras cotidianas.

Tentarei apresentar, tanto quanto posso fazê-lo, o fotógrafo Bavcar, relacionando-o a algumas passagens do filme "O silêncio"(1) e a uma exposição de Sophie Calle (2).

Evgen Bavcar

Evgen Bavcar nasceu em 1946, na Eslovênia. Nasceu cego? Não. Evgen Bavcar pode vislumbrar muitas paisagens, principalmente aquelas de Ljubljana, as quais ele guarda com carinho em sua mente e as retrabalha a cada imagem que produz. Foi através das janelas de um hospital daquela cidade que, em 1957, Bavcar viu uma última imagem: a de um tramway que seguia seu curso. Sim, a memória é a materia-prima deste fotógrafo-artista-filósofo-poeta.

Bavcar pode enxergar até a idade de 11 anos quando o destino encarregou-se de retirar-lhe este bem precioso: a visão. Foram dois acidentes consecutivos que feriram fatalmente, primeiro um, depois o outro olho. Durante o intervalo entre os dois acontecimentos, Bavcar diz ter observado o mundo apenas com um olho só. Experiência monocular, aprendizado de miradas certeiras, talvez. Em seus escritos, ele nos conta: "Eu não fiquei bruscamente cego, mas pouco a pouco, com a passagem dos meses, como se se tratasse de um longo adeus à luz. Desta forma, tive eu todo o meu tempo para dar conta do vôo dos objetos mais preciosos, as imagens dos livros, as cores e os fenômenos do céu, e lhes carregar comigo em uma viagem sem retorno. Talvez tenha sido uma sorte que isto tenha se passado lentamente. Talvez tenha sido somente o cinismo do destino que tratava deste retardamento. Espero não ser nunca obrigado a responder estas questões de modo preciso." (3)

Atualmente, Evgen Bavcar vive em Paris, em uma tradicional avenida do bairro 14. Em frente à porta de entrada de seu prédio, encontra-se estrategicamente bem colocada, uma saída de metrô. A poucos passos dali, uma rua destinada somente para pedestres, repleta de cafés, pequeno comércio, feira permanente de frutas, legumes, frutos do mar e outras especiarias perfumadas. Talvez Bavcar alimente-se também deste burburinho. Ele o frequenta com uma naturalidade impressionante. Olhando suas fotos, percebemos o quanto elas traduzem de sua percepção do mundo.

Ele foi naturalizado como francês em 1981 e trabalha até hoje como pesquisador junto ao CNRS. Sua formação profissional compreende estudos de filosofia e estética. Sua tese de doutorado intitulou-se "Arte e sociedade nas estéticas francesas contemporâneas".

Silêncios

Evgen Bavcar produziu algumas séries de fotografias separadas em três sequências, sob um mesmo título: "Silêncio". Temos a sequência I, II, e III. Em seu livro. ele nos faz ver algumas destas imagens, acompanhadas, cada uma, de um breve ensaio sobre as suas experiências. Ao lermos seus escritos, não temos mais nenhuma dúvida em relação à origem deste silêncio. Trata-se da elaboração de uma perda, de uma irreversibilidade absoluta: a morte de sua mãe. São muito os detalhes ampliados pelo texto e pelas fotografias. O principal deles constitui-se de um acender de velas. "Disseram-me que as velas brilhavam", inicia Bavcar, abrindo o texto da primeira sequência. A partir deste breve depoimento, Bavcar permite-se fazer associações acerca dos momentos de sua infância nos quais velas eram acesas por sua mãe. Ele chega a descrever o som, o ruído do arranhar do palito na lixa da caixinha de fósforo. São suas lembranças que brilham no lume das velas acesas, e é uma estranha luz que faz possível o surgimento de uma fotografia em preto e branco: "Icone" é o título da foto que apresenta um móvel antigo, talvez pertencente a sua mãe. Na imagem, ele aparece como sombra luminosa centralizada em fundo totalmente escuro, chapado. O contorno branco é vazado pelos espaços pretos, apresentando um aspecto fantasmático da memória. Poderíamos dizer que trata-se, neste caso, de um esboço de imagem. A primeira sensação assemelha-se àquela que experimentamos ao estar diante de uma das formas moles do artista americano Robert Rauschenberg.

Desta primeira sequência, fazem parte também duas fotografias intituladas "Nostalgia" e uma outra cujo título anuncia a lembrança: "Paisagem da infância eslovena". Torna-se aqui necessário dizer que Evgen Bavcar não se contenta em apenas ampliar a imagem gravada em superfície sensível do filme fotográfico. Sobre o negativo revelado, ele arranha, desenha com instrumento pontiagudo, inscreve, grafita, produz também seus ícones: coqueiros, barcos, pautas musicais.

Pautas musicais

O silêncio é, sabemos, uma grande pausa. O silêncio é componente essencial da música. É o branco da página para o poema; é o espaço entre uma forma e outra de uma produção em quaisquer uma das categorias das artes visuais.

O silêncio nasce, para Evgen Bavcar , no momento em que ele espera algum retorno de suas batidas na madeira do caixão onde repousa o corpo de sua mãe, momentos antes do enterro. Como resposta, nada além de um som ôco. "Era a sua última mensagem", conta-nos o autor "Sem palavras. Sim, o silêncio, a palavra que eu procurava em vão em todos os dicionários e em todas as línguas vivas ou mortas, se fez calada" (4).

"O Silêncio" é também o título do mais recente filme de diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf. Um filme que fez-me mergulhar mais uma vez nas fotografias de Evgen Bavcar e, através delas, em todo o universo misterioso da cegueira. Assistir ao filme, uma, duas, três ou quantas vezes for necessário equivale simplesmente a colocarmo-nos diante de uma questão essencial: quais são as nossas maneiras de nos relacionarmos com o mundo ao nosso redor, o pequeno mundo que nos faz existir? O que fazemos com os nossos sentidos? Ou ainda mais diretamente falando, como lidamos com a nossa cegueira habitual?

O filme inicia com os sons da rotina matinal do personagem Khorshid, um menino de cinco anos, cego, que ajuda o orçamento familiar empregado como afinador de instrumentos musicais em uma loja da região. São quatro batidas ritimadas e insistentes na porta da casa, anunciando a proximidade do dia do pagamento do aluguel. São os zunidos de uma abelha, bichinho de estimação do menino, com a qual ele mantém diálogos fascinantes. "Não vá se perder" orienta o rapaz, que parece sofrer deste mal, pois perde-se frequentemente quando dirige-se ao trabalho, todos os dias, fazendo o percurso de ônibus.

Se o filme inicia com sons, termina com o fragmento de uma grandiosa sinfonia, a 5° de Beethoven. O zunido da abelha habita o ouvido do menino quando ele os deve vedar. Muitas vezes, Khorshid também é orientado a tapar os ouvidos com os dedos ou chumaços de algodão. Por quê? Sua amiga e companheira de aventuras no filme é quem nos explica: ele deve evitar ouvir vozes bonitas ou música, pois estas melodias o fazem desviar-se do caminho antes de chegar ao trabalho. "Não esqueça de tapar os ouvidos, Khorshid, para não ouvir nenhuma voz bonita! Não vá perder-se!".

Inútil conselho. Somos cúmplices em tempo integral de nosso personagem, quando este faz seus percursos. Ele nos coloca em estado de alerta para todos os sons: da chuva, do vento, dos insetos, das rodas das carretas atritando o chão, o motor do precário ônibus. A música está presente em todo enredo, e os intrumentos típicos são os de corda. Acordes afinados e sons dissonantes são a trilha sonora de imagens irresistivelmente belas, sensuais e evocativas. Durante toda a sessão de cinema, mantemos os olhos abertos apenas para acentuar a nossa cegueira. Khorshid recomenda-nos: "Os olhos nos distraem. Se fechar os olhos, aprenderá melhor".

Tudo é partitura, no filme. A linearidade das imagens é impressionante. Acompanhar, por exemplo, a busca do melhor pão no mercado informal das mulheres que querem ganhar mais um trocado no dia equivale a acompanhar as notas, uma a uma, em uma pauta de música. Para surpresa nossa, a escolha é feita não pela maciez ou textura do pão, todos tocados pelos dedos de Khorshid, e sim pelo tom da voz de quem anuncia o seu produto. Outro bom exemplo são as rodas de carretas, arrumadas infinitamente lado a lado, nos caminhos do protagonista. Ainda mais uma: à beira do lago, as aves alinham-se, como que arrumando-se para serem lidas. Na outra margem, são os arbustos e árvores que se oferecem de modo ritimado. Da partitura à sinfonia, resta-nos acompanhar os pingos de chuva batendo nas cordas de um instrumento caído no chão e as batidas do martelo de um exército de pobres empregados a fabricar panelas de cobre. Tudo isto regido pelos braços e sensibilidade de Khorshid.

Viva o momento, não perca tempo

"Viva o momento, não perca tempo
Não conte com o presente nem com o passado
Não fale mais sobre o que houve ontem
Não se preocupe com o que acontecerá amanhã"

Esta é a primeira canção, que duas escolares tentam decorar, repetindo os versos inúmeras vezes, durante o trajeto de ônibus para o colégio. Como quem espia entre as pálpebras, Khorshid deixa vazar o som por um de seus ouvidos, descolando o dedo do orifício.
As meninas lêem os versos. O menino cego escuta e repete toda a sequencia, sem hesitar. Fascinadas com a habilidade de Khorshid, elas fecham os olhos e reiniciam o exercício, sem olhar o texto. Desta vez, quem perde o ponto de parada para a escola são elas. Uma das primeiras lições foi já ensinada: no momento em que nos entregamos à operação dos sentidos, corremos o risco de perdermos o caminho previamente estabelecido.

Conforme o já anunciado, Khorshid perdia-se com frequência. Acompanhamos, em uma das sequencias do filme, a mistura de cheiros e sons de um mercado público. Sua companheira tenta levá-lo em direção à loja de instrumentos. Porém, um passante que segurava um rádio portátil ligado foi o responsável pelo desvio de nosso amigo. Fio invisível amarrando o ouvido de Khorshid ao aparelho. Passo a passo, foi distanciando-se da menina. Para reencontrá-lo, ela simplesmente utiliza o seu método: fecha os seus olhos, elege um som e segue-o. Encontra Khorshid encostado a uma cerca, que separava os espaços da calçada e do pátio interno de uma construção, onde acontecia uma apresentação musical.

O filme "O silêncio" provocou-me uma série de associações e lembranças, fazendo-me refletir ainda um pouco mais sobre o silêncio de Evgen Bavcar, permeado de lembranças da infância. Em suas descrições, encontramos sempre uma cor definida para o céu (um dia azul, outro mais cinza), a terra marrom. Do cortejo de seu pai (Bavcar tinha oito anos de idade quando seu pai faleceu), ele retém a cor escura do vestido de sua mãe e o silêncio das montanhas. Para Khorshid, o som da abelha era um porto seguro. Para Bavcar, o canto de uma cigarra, segundo seus próprios depoimentos, foi capaz de sossegar um pouco a angústia do momento de escrever suas narrativas para a segunda sequência de fotos denominada "Silêncio": Assim comenta o autor: "Perto da janela da cozinha, escutávamos sempre uma cigarra cantar infinitamente longos adeuses. Ao longe, reconheci o ruído do córrego, enquanto que o sopro do Loire nas castanheiras enganava o silêncio. No ar, ressentia sempre o hálito familiar do outono que, vindo, me esmagava com um sentimento doloroso de solidão. Como sempre, eu caminhava sob as janelas da casa. Eu espera escutar, no silêncio, da janela mais alta, a tosse de minha mãe, sua tranquilizadora presença. Mais isto me fazia curvar cada vez mais em direção à terra." (5)

Uma relação muito forte para Bavcar é aquela entre sua mãe e a Eslovênia. Mãe e terra natal. Útero e berço. Toda a série da terceira sequência de fotografias de "Silêncio" é dedicada à Eslovênia. A primeira delas, reproduzida em seu livro, retrata uma moça que sorri, braços cruzados e rosto excessivamente iluminado, no interior de uma residência. Na parede, bastante visível, um mapa emolduradotal como o vemos, seguidamente, nas telas de pintura do pintor holandês Vermeer, com a seguinte pergunta escrita no alto: Slovenija. Where is it?

Esta mesma pergunta encontraremos escrita, manuscrita, arranhada no negativo de algumas outras fotografias, cujas imagens não são evidentes, isto é, não são óbvias. O que vemos? Não sabemos ao certo. Melhor entregar-mo-nos ao devaneio e perder-mo-nos no caminho.

Em uma outra de suas publicações, "Images d’ailleurs" encontramos a seguinte imagem de abertura: a ampliação de um negativo com um retângulo centralizado horizontalmente, com a mesma pergunta, inserida na forma geométrica. Da maneira como se encontra, mantém uma familiaridade com os conhecidos quadros do francês Ben Vautier.

Espelhos

"- O que é isso?
- Um espelho.
- Para que serve?
- Para se olhar.
- Eu também apareço?... Onde estou nele?
- Este é o seu rosto... Estas são suas sombrancelhas... Este é você, Khorshid!"

Este é mais um pequeno fragmento do diálogo entre o menino cego e a sua ajudante, em um momento de repouso na beira de um lago , que por si só já seria um espelho. A menina possui um espelhinho de mão, e admira-se nele, após enfeitar-se com cerejas nas orelhas, feito brincos, e pétalas de flores nas unhas, manicure infantil. Como não evocar os espelhos quando queremos apontar a complexidade do mundo das imagens?

O espelho também é um objeto caro a Evgen Bavcar, que tem o hábito de usar um como broche na lapela, a fim de que seus interlocutores possam encontrar o retorno de seu olhar ao conversar com Evgen. Pois como um cego poderia fazê-lo melhor? Na casa do fotógrafo, encontramos espelhos dos mais diferentes formatos, colocados em vários locais não muito habituais. Na parede, em alturas diversas, nas prateleiras de livros, na cabeceira da cama. Neste último local, também podemos ver uma ou duas bonecas, com o rosto de borracha voltado para a parede. Evgen pede-me que não as fotografe, e muito menos que não as toque. Ele diz que somente ele, em sua intimidade absoluta, pode "ver" os olhos delas. Detalhes de sua maneira de viver que nos indicam que o seu pensamento está muito mais além do de um fotógrafo cego, como é geralmente classificado pelos que o conhecem a partir da mídia.

Pois os espelhos também o ajudam a fazer com que seu interlocutor assuma um outro ponto de vista. Esther Woerdehoff nos faz conhecer um fato elucidativo: um dia, uma senhora manifestou seu desejo de ser fotografada por Bavcar. Por quê alguém se preocuparia em se fazer bela para ser mirada por um homem que não vê? Bavcar então lhe pede que se aproxime de um dos inumeráveis espelhos de seu apartamento, se olhe e se enquadre ali. Pede também que o pegue pelas mãos, o conduzindo para diante da imagem. "Mostre-me a mulher que você reconhece no espelho!", é a sua última demanda. Entre o "olhe-me’ provocativo da mulher que se oferece como modelo e o "olha-te" irônico do fotógrafo, encontramos a justa medida das implicações contidas no complexo enredo de nossa perplexidade preconceituosa.

Mostre-me a mulher que você é, Sophie Calle


A artista plástica Sophie Calle(6) tentou encontrar-se com Evgen Bavcar e, sem intensão, tornou-se eixo central de suas contestações face ao preconceito em relação aos cegos. Vejamos porque seu trabalho contribui para as nossas reflexões em torno deste tema tão complexo.

Há algo de comovente na constatação de uma impossibilidade. Ao contemplarmos o que falta ao outro, sucumbimos às lacunas que nos habitam silenciosas. De nossos olhos, pode vazar a sensação úmida de um entendimento súbito: olhar não eqüivale a ver; ver não eqüivale a saber (a verdade).

Gostaria de relacionar aqui uma experiência vivida já fazem alguns anos. Sirvo como testemunha ocular. Quero confiar no hiato de tempo (1991-1998) e no trabalho conferido à memória. Não tenho nenhuma intenção de forjar uma verdade, apenas compartilhar o fato de ter caído em uma armadilha. Sim, e eu devo a esta derrapagem do olhar, a este tropeço na leitura, a mudança de rota em algumas de minhas pesquisas. Comecei a interessar-me desde então, e de modo mais particular, pelos problemas referentes ao olhar e à cegueira nas artes visuais. De certo modo, sirvo-me deste artigo para também introduzir a entrevista com Evgen Bavcar, publicada neste mesmo número da revista Porto Arte. Vale lembrar que Evgen a menciona, com muita ênfase, já no início da conversa.

Uma exposição

A exposição "SOPHIE CALLE, À SUIVRE...." constituía-se de várias salas, separadas por "assuntos", digamos assim, onde encontrávamos séries de fotografias apresentadas em moldura e vidro, como quadros. Ora em preto e branco, ora em cores, as dimensões variavam bastante. Em todas as situações, dependíamos da distância em que nos colocávamos para "ver". Este dado é inerente a todo contexto de apreciação das artes visuais. Porém, esta exposição deixou-me também em reticências, como sugerido em seu título. Desde o início do percurso, tive a sensação de estar penetrando no universo íntimo da artista. Através de suas fotografias, podia-se ver o que ela viu, sorrateiramente. De uma sala à outra do museu, tínhamos a oportunidade de testemunhar um acontecimento, seja de pessoas dormindo em uma cama comum, por exemplo, seja uma viagem de trem, através de um compartimento ocupado por duas pessoas, seja ainda instantâneos em quartos de hotel, na ausência de seu habitante. Diante de mim, encontravam-se as imagens enquanto provas.

A fotografia, de modo geral, é documento. Ela registra uma realidade. Ela congela um instante. Ela amplia um gesto. Não estaríamos exagerando se disséssemos que a fotografia é uma memória materializada. Mas estará ela sempre ligada ao real? Até que ponto podemos acreditar em nossos olhos?

Em um primeiro momento, a exposição de Sophie Calle parecia estar querendo contar uma história. As imagens foram justapostas em sequência, como uma história em quadrinhos. Havia até mesmo legendas, textos breves ao lado da cena ou interagindo com os objetos e/ou pessoas fotografados. Não temos dúvidas quanto à intenção da artista em nos fazer testemunhar de algo. Existe uma vocação narrativa inerente à fotografia. Porém, o certo é que a situação onde fomos colocados não era nada confortável: ou voyeurs ou sujeitos enganados. Jamais descompromissados trauseuntes.

A armadilha

A imagem de um rosto. A transcrição de um depoimento. A fotografia da cena, da paisagem, do objeto ou pessoa descritos no texto. Eis os elementos que formavam o conjunto de cada um dos "quadros" de Sophie Calle para o módulo intitulado "OS CEGOS" de sua exposição. Associando um a outro destes elementos percebíamos que se tratava do imaginário construído por um indivíduo cego de nascimento. A pergunta que teria sido colocada a cada um deles foi a seguinte: "Qual é a sua imagem de beleza?" As respostas constituíram a fonte de todo o trabalho da artista.

Transcrevo aqui algumas das respostas:

"A coisa mais bonita que já vi foi o mar, o mar a perder-se de vista"

"O mar, o imagino belo, muito mais do que todas as descrições que já me fizeram. Eu teria tendência a gostar do azul porque associo-o ao mar. Creio que, se pudesse ver, seria marinheiro."


"No livro Romance em Granada, Claude Jaunière conta a história de uma jornalista de origem social modesta a quem seu chefe encomenda uma reportagem em um grande hotel em Granada. Nunca tinha conhecido tanto luxo. Nos quartos, há tapetes e quadros, móveis antigos, uma cama magnífica. Tudo parecia tão bonito no livro... Me agradam as coisas belas, e nunca tinha imaginado nada igual.
Um céu estrelado, isto deve ser lindo. Dizem que uma estrela é uma luz, mas que pode haver coisas em seu interior."

"Em 1963, em 6 de agosto às 11 da manhã, me casei em Nîmes. Meus colegas haviam feito um caminho com bengalas brancas. As pessoas que passavam por ali diziam: Que bonito todas essas bengalas brancas!"

"Do belo, tenho feito meu luto. Eu não tenho necessidade da beleza, eu não tenho necessidade de imagens em meu cérebro. Como eu não posso apreciar a beleza, eu fujo dela."


Estes depoimentos são dramáticos. Perto de cada um deles, Sophie Calle colocou o retrato, o rosto do indivíduo cego, frontalmente, com seus olhos voltados para o espectador. Junto, encontramos a também fotografia, então, do que estaria sendo descrito: o mar, o céu estrelado, a bengala branca... E a ausência completa de imagens perto daquele que foge da beleza. Como disse, havia algo de comovente. Acusava-se a falta de um de nossos cinco sentidos àquelas pessoas. Então, víamos alguém impossibilitado de ver. Perversamente, gozávamos esteticamente a partir do sofrimento do outro. O enredo estava muito bem montado. Entretanto, tudo isso não passava de uma armadilha.


Qual é o problema? Onde está o tropeço? Pois justamente onde há verdade, há mentira. Onde há realidade, há ficção. E onde há visão, há cegueira. Um elemento não descarta o outro, e a inter-relação torna-se ponto nodal de todo o processo de criação de Sophie Calle.

Se ficamos emocionados com as frases dos cegos no momento de sua leitura, sentimo-nos depois extremamente traídos ao tomar conhecimento de que nem tudo é verdade. De fato, a artista pesquisou o universo dos cegos, investigando peculiaridades de suas vidas. Colocou questões, fotografou seus rostos e procurou, em torno deles, imagens que correspondessem às respostas fornecidas. Porém, algumas formulações desejadas não chegaram a existir, isto é, Sophie Calle gostaria de ter ouvido alguns depoimentos que não foram ditos. Coube a ela, nestes casos, inventar respostas, forjar fisionomias, criar as cenas. É sabido que algumas respostas são verdadeiras e poucas entre elas são falsas. Mas quais? Ninguém sabe. Ninguém?

Pois foi justamente o projeto deste trabalho que fez com que Sophie Calle marcasse, por telefone, um encontro com Evgen Bavcar. Ela gostaria de fotografá-lo e entrevistá-lo. Foi logo dizendo: "Eu gostaria de vê-lo para..." Ao que ele respondeu: "Eu também gostaria de vê-la". O encontro deu-se no apartamento do fotógrafo, totalmente escurecido feito câmara obscura. Ali, ninguém poderia ver o que quer que fosse. "Sente-se" disse amavelmente o anfitrião. "Aonde?" - replicou a artista "eu não estou vendo nada!". "Eu também não", foi a frase final, que imprimiu de uma vez por todas o grau de impossibilidade de tal encontro.

Ao escutar os depoimentos de Bavcar, tive a impressão de que ele compreendeu de maneira muito contundente a intenção da artista, e fez rodar a moeda para que ela caísse em seu reverso. Neste giro, cá estamos nós a tatear o espaço entre os paradoxos da cegueira no campo das artes visuais.

Bibliografia


BAVCAR, Evgen. Le voyeur absolu. Paris, Seuil,1992.

BAVCAR, Evgen. Les tentes démontées ou Le monde inconnu des perceptions. Paris, Item, 1993.

BAVCAR, Evgen; BOESCH, Jacques; WOERDEHOFF, Esther. Evgen Bavcar - L’inaccessible étoile. Un voyage dans le temps. Berne, Ed.Benteli, s.d.


SAGNOL, Marc. Evgen Bavcar, iconographe de la mémoire.in: catálogo da exposição Evgen Bavcar - Images d’ailleurs. Institut Français de Dresden/Institut Français de Berlin. 1991

Sophie Calle - relatos. Catálogo da exposição realizada na Sala de exposições da Fundación La Caixa - dez/96-jan/97. Curadoria de Manel Clot.

NOTAS

1 Este é o mais recente filme do diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf, lançado em 1998.
2"Sophie Calle, à suivre" Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1991.

3 BAVCAR, Evgen. Le voyeur absolu. Paris, Seuil, 1992. P.8

4 BAVCAR, Evgen. Le voyeur absolu. P.76

5 BAVCAR, Evgen. Le voyeur absolu. P.84

6 Sophie Calle nasceu em 1953, em Paris, onde vive atualmente. Seu trabalho e sua personalidade são um dos pontos que trata Evgen Bavcar, em entrevista publicada neste número da Revista Porto Arte. A referida exposição tinha por título "Sophie Calle, à suivre..." e foi realizada no Museu de Arte Moderna da cidade de Paris, em 1991.

 

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Elida Tessler: artista plástica, professora do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes - UFRGS. Doutora em História da Arte na Université de Paris I, Panthéon-Sorbonne, França.Fundadora e coordenadora, junto com Jailton Moreira, do Torreão- espaço de produção, reflexão e aprofundamento de pesquisa em arte contemporânea, Porto Alegre. Artista-pesquisadora junto ao MAB/Minc no período 1998/99.

Evgen Bavcar: Artista e fil&oacute;sofo, nascido na Eslov&ecirc;nia em
1946. Naturalizado como franc&ecirc;s em 1981, trabalha como pesquisador
junto ao CNRS desde 1976, Fran&ccedil;a. Doutor em filosofia est&eacute;tica.
Autor de v&aacute;rios livros, entre eles Le voyeur absolu , Paris, Seuil,
1992.Vive em Paris, Fran&ccedila.

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