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A hermenêutica simbólica como possibilidade epistemológica
para o estudo do espaço teatral

Ismael Scheffler

RESUMO:
A hermenêutica simbólica, estudada a partir do Círculo de Eranos, traz à discussão uma abordagem teórica que se contrapõe ao domínio da racionalidade científica (logos) nas análises dos fenômenos culturais, ao mesmo tempo em que pretende complementar as formas de compreensão do mundo, reconectando-as com as questões subjetivas (simbólicas e míticas). O estudo sobre o espaço teatral pode encontrar importante campo de exploração sob o fundamento eraniano.

PALAVRAS CHAVES:
1. hermenêutica simbólica
2. teatro sagrado
3. espaço teatral



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Ao longo do século XX, o espetáculo teatral começou a ser teorizado e estudado, sendo cada vez mais compreendido como um objeto distinto do texto dramático. Essa compreensão da encenação como um campo de pesquisa se dá a partir da contribuição da semiótica; ela reconhece que o signo básico do teatro não é a palavra, e que o teatro deve ser entendido como polissêmico, não havendo no ato teatral uma unidade sígnica estática única.

Relativamente paralelo a este processo, alguns teatristas desenvolveram suas experiências e estudos buscando um teatro que tivesse como proposta "a integração do público e a ação, a resistência à linguagem como meio primário de comunicação, a busca de estados de transe ativos e o 'rechaço à estrutura e lógica sintáticas burguesas'" (INNES). O chamado teatro sagrado despertou novas discussões no meio. Lançou não apenas propostas estéticas ou políticas, mas se debruçou sobre uma natureza mais simbólica e mítica.

Enquanto Antonin Artaud desenvolvia seus escritos em meados da década de 30, um grupo de pesquisadores se articulava em Ascona, Suíça, assumindo uma composição interdisciplinar de caráter filosófico-científico: o Círculo de Eranos.

Este grupo foi composto por várias gerações de estudiosos de diversas áreas: antropólogos, psicólogos, fenomenólogos, mitólogos, orientalistas, entre outros, provindos de diversos países, especialmente europeus. Realizando conferências anuais, reuniu-se de 1933 a 1988, tendo publicado 57 volumes sobre seus encontros: os Anuários ou Jahrbücher.

Na origem de Eranos, encontra-se três personalidades que conferiram igualmente uma tridimensionalidade cultural aos estudos da hermenêutica simbólica, que nos ajuda a compreender os fundamentos teóricos das pesquisas:

 


- a fundadora, Olga Fröbe-Kapteyn, a "grande mãe" que instigada por estudos místicos orientais pretendia estabelecer um diálogo entre a cultura ocidental e a cultura oriental.

- Rudolf Otto, considerado o padrinho do grupo, nunca participou das conferências mas influenciou, não apenas batizando como Eranos (palavra grega que significa "comida em comum"), como também emprestando seu método hermenêutico-compreensivo, que baseia-se na interpretação empática da essência vivida. Como fenomenologista da religião dá importante contribuição na elaboração do Círculo.

- Carl G. Jung, considerado o inspirador do grupo, contrapõe seus estudos da psicologia arquetipal à fenomenologia de R. Otto, trazendo assim a hermenêutica das profundidades.


Eranos buscava uma aproximação "cultural" do oriente, considerando-o como "um outro complementar". Compreendendo que a razão não possibilita uma compreensão integral do ser humano, Eranos se propõe a compensar a unilateralidade da razão, confrontando-a com a questão simbólica, na tentativa de confluir o mito e a razão, para chegar a uma visão intermediária e complementar.

Cada pesquisador trabalhava a partir de sua perspectiva específica sobre questões comuns previamente propostas, seguindo todos por correntes paralelas de investigação. A questão do sentido ocupa lugar central em Eranos: o sentido da vida e da existência, a morte, a pergunta pelo divino, a razão em suas capacidades e limites.

Para os pesquisadores eranistas, o significado simbólico surge somente a partir da experiência vivida, na relação direta, sentida, na epifania, na revelação.

Embora não tenha sido um membro do Círculo, Ernest Cassirer - filósofo neo-kantiano assumido - também estará em sintonia com o grupo reconhecendo no ser humano a capacidade de simbolização e sua natureza inerente ao homem, definindo-o não como o "animal racional" de Aristóteles, mas como o "animal simbólico".

Conforme Gilbert Durand, o símbolo se dá através de uma imagem concreta que evoca e sugere um significado impossível de se compreender diretamente. É através do símbolo que se dá a epifania, a transcedência, através de uma projeção do subjetivo sobre o objetivo, não sendo de forma alguma racional; ocorre na intimidade da alma, não se reduzindo a comunicação ou transmissão de um saber pré-estabelecido.

G. Durand também destaca que o símbolo excede em significação, possuindo pluridimensões, não expressando nunca sua totalidade. O símbolo, ambíguo e obscuro, pode evocar qualquer qualidade. E, sendo dotado de um poder de ressonância, só pode ser apreendido na experiência vivida.

O símbolo, que não pode ser compreendido totalmente, é apresentado como anterior à linguagem. Durand destaca que a apreensão da realidade é marcada por interpretação ou simbolização da vivência; daí afirmar-se que a simbolização é anterior ao pensamento racionalizado, objetivo. A imagem simbólica se forma antes de qualquer conceito ou conhecimento objetivo, já que este é elaborado depois da experiência. Assim, afirma Durand, encontramos a capacidade imaginativa não como uma capacidade inferior à razão e à linguagem elaborada, mas na origem destas, anterior a elas.

Se por um lado o símbolo se dá através de uma imagem, é no mito que este se organiza em uma dimensão dinâmica em forma de relato, formando uma linguagem mítica. O mito é assim um esboço da racionalização, pois, utilizando o discurso, transforma símbolos em palavras. No entanto, o mito não pode ser traduzido ou explicado, pois com isto se realiza a redução dele. O mito pode ser compreendido através das redundâncias, das repetições dos mitemas (unidades mínimas do mito), tanto em sua estrutura interna própria, quanto na correlação de mitemas presentes em outros mitos. Para a análise de mitos, G. Durand elabora a sua mitocrítica e a mitoanálise.

K. Hübner, trabalhando sobre a relação mito e logos, define o papel do sujeito. Ele aponta que na experiência mítica, a relação é viva e direta, havendo uma interpenetração mútua entre sujeito e objeto. Na relação mítica não há distinção entre o mundo objetivo e o numinoso (termo que R. Otto utiliza para definir a consciência do sagrado, inspirador de admiração e temor). A ontologia é fusional ou vinculativa. Esta experiência pode se dar tanto em ações físicas quanto em ações interiores, fisicamente menos dinâmicas.

Na ciência, no logos, há a separação entre sujeito e objeto. O objeto é visto somente como material, dando-se as relações dentro de um tempo e um espaço específicos. A ontologia aqui é separadora ou distingüidora, baseada na razão.

É dentro dos ritos que os mitos são revividos, reencontrados, celebrados, realizados. Todo rito, como o símbolo, se dá em um espaço e um tempo que são eminentementes relação. O rito reunifica tempo e espaço provocando uma sincronicidade, uma simultaneidade com o acontecimento original, o eterno retorno.

Entre os pesquisadores da hermenêutica simbólica, encontra-se Mircea Eliade, cientista da religião, que analisa as diferenças entre o espaço sagrado e o espaço profano. Ele aponta estas duas modalidades, sagrado e profano, como diferentes situações existenciais, diferentes maneiras de ser no Mundo. O espaço sagrado não é homogêneo, ele é dotado de um valor qualitativamente diferente, forte, significativo. O espaço profano é o espaço geométrico, matematicamente homogêneo. Eliade destaca que a hierofania, como chama a revelação do sagrado, evidencia valores e define pontos de referência de uma realidade absoluta, fundando um novo mundo.

Gilbert Durand, que estuda a questão simbólica também na arte, afirma que na criação de uma obra literária existe a instalação de um universo exemplar, que possui suas leis e organização, dotado de uma carga mítica. Mais que uma simples visão de mundo, a arte articula valores mitológicos. Todo objeto artístico se propõe em sua elaboração a romper com o tempo cronológico e a homogeneidade espacial.

Todo espetáculo teatral é sempre fundação de um universo exemplar, com tempo e espaço distinguíveis do cotidiano. Entre os espetáculos cênicos podemos, contudo, reconhecer diferentes intensidades simbólicas, percebendo em alguns uma capacidade de proporcionar experiências mais hierofânicas, com a vivência de realidades mais arrebatadoras, remetentes à origem ontológica do mundo.

No livro O teatro e seu duplo, Artaud discute a separação que a sociedade faz do mundo espiritual do mundo físico. Propõe um teatro que reunifique o homem, que recupere as raízes humanas do sagrado. Ele critica a racionalidade e acredita que o teatro pode levar o homem a reencontrar-se integralmente. Em seus escritos, critica o domínio prevalecente da palavra no teatro e sugere a utilização de gritos, lamentações, vozes encantatórias, ritmo físico acompanhado de pulsações crescentes e decrescentes, para que se atinjam outros níveis da percepção. Propõe que todo teatro seja vida, experiência, revelação, onde haja uma interpenetração entre o espectador e a cena, de forma que esta o tome como a peste. Nas palavras dele: "uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que, aliás, só poderá assumir todo seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heróica e difícil" (ARTAUD, p. 24).

O espaço para Artaud é uma exigência do teatro não apenas por que reúne todas as linguagens, mas por que é nele que se dá o encontro entre os homens. Por este motivo, propõe, ao invés de uma sala de espetáculos que separe atores e platéia, que se utilize um lugar único, sem barreiras ou divisões, que aproxime o espectador à cena. Artaud se interessa pelos "subterrâneos" do espaço, mais do que pelas dimensões físicas. Para este autor, o teatro é o local da manifestação da cultura, força motriz e integradora que leva a uma experiência única e simbólica; local da revelação de algo maior, de forças externas semelhantes "às forças da velha magia", que atinjam o inconsciente; "quer fazer florescer o espaço e fazê-lo falar" (FELÍCIO, p. 120).

O lugar cênico para Artaud deveria ser todo ocupado, cercando a platéia para que não houvesse "intervalo nem lugar vazio no espírito ou na sensibilidade do espectador" (ARTAUD, p. 125). Esta interpenetração entre sujeito e objeto tem propostas ao estabelecimento de uma relação mais íntima, não racionalizada, fundindo espectador e cena, de forma com que os limites entre vida e cena tendam a desaparecer.

As propostas artodianas vão muito além de uma estética que se proponha a copiar ou recriar a partir de rituais celebrativos de qualquer tradição ou de mitos arcaicos. Ele quer propor, não uma aparência (ao que se posiciona veementemente contra), mas sim, a reinstituição do rito em nossa cultura ocidental, de forma efetiva, para que a vida possa ser renovada.

Parece-me importante que se reconheça as possibilidades que a hermenêutica simbólica pode trazer para a compreensão do teatro, aspectos que bases teóricas mais estruturalistas calcadas na razão não abarcam. Propostas teatrais que não tem uma preocupação com a linguagem e a comunicação objetivas de uma mensagem, nem com a delineação de uma estética definida, necessitam ser consideradas em associação com áreas de estudos com as quais possuam afinidades.

Ao compararmos os conceitos trabalhados pela hermenêutica simbólica e os termos utilizados pelas formas de teatro sagrado, perceberemos que esta associação pode ser a chave para uma compreensão mais profunda destas propostas teatrais que muito influenciaram e influenciam a forma de se fazer e pensar teatro em nossos dias.

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Bibliografia



ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CORBIN, Henry. El tiempo de Eranos. Anthropos Revista Científica, nº 153, Barcelona, 1994.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

FELÍCIO, Vera Lúcia. A procura da lucidez em Artaud. São Paulo, Perspectiva: 1996.

GARAGALZA, Luis. La interpretación de los símbolos: hermenéutica y lenguaje en la filosofía actual. Barcelona: Anthropos, 1990.

------------ . Filosofia e historia en la Escuela de Eranos. Anthropos Revista Científica, nº 153, Barcelona, 1994.

INNES, Christopher. El teatro sagrado: el ritual y la vanguardia. México: Fonde de Cultura Económica, 1992.

ORTIZ-OSÉS, Andrés. El círculo Eranos: origem y sentido. Anthropos Revista Científica, nº 153, Barcelona, 1994.

PALACIOS, Felipe Reyes. Artaud y Grotowski - ¿el teatro dionisiaco de nuestro tiempo? México: Escenologia, 1991.

VARGAS, Antonio. O conceito de símbolo no estudo da hierofania estética. Revista on-line Periscope Magazine, ano 1, Nº 1, Abril 2001. ISSN1519-6100 - endereço eletrônico http://www.casthalia.com.br/casthaliamagazine/casthaliamagazine.htm

------------. Antropologia simbólica: hermenêutica do mito do artista nas artes plásticas. In BULHÕES, Mª. A. & KERN, Mª. L. (org). As questões do sagrado na arte contemporânea da América Latina. Porto alegre: UFRGS, 1997.

VERJAT, Alain (org). El retorno de Hermes: hermenéutica y ciencias humanas. Barcelona: Anthropos, 1989.


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