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O Ser-Tempo: o escorrer dos relógios

Anita Prado Koneski


Ao nos deparar com a questão do tempo, causa-nos uma certa angústia perceber que este se situa entre: ser um problema de existência e ser um problema de conhecimento. O tempo parece estar intrincado com a nossa existência, enquanto ser, no mundo, mas também está no esquema conceitual da Física, da Astronomia, da Teoria da Relatividade, que parecem, sempre, muito distante de nós. Trata-se, como nos sugere Elias (1998), de um tempo construído socialmente e de outro que chamamos natural, erroneamente separados nos esquemas dualistas com os quais sacrificamos o mundo. A proposta Física é a de "agarrar" o tempo no conceito. Agarrar o mesmo tempo que se escoa no elã vital (esse tempo social), "o desenrolar de um novelo", como proposta de Bergson (1989), ou seja, o enrolar-se contínuo de um fio numa bola, que cresce sem cessar a cada presente que incorpora em seu caminho. Viver é envelhecer, nos diria Bergson (1989). Trata-se de verificar se este tempo é linear no seu enrolar-se (evolucionismo), se ele pode ser aprisionado e, como nos diria o poeta, se o tempo não é mesmo essa "tardança do futuro".

Tratando-se do poeta, que percebe o tempo como a tardança do futuro, observamos um tempo próprio da poesia. O poeta fala do tempo que a vida é, ou como diz Heidegger In: Morente (1980:314), do "futuro sido". O poeta inverte, tal qual faz Heidegger, o pensamento de que o tempo começa pelo presente, e diz o presente como um futuro que vem a ser. O futuro aqui não é mais a conclusão de um processo começado. Dá-se a inversão do tempo, compreendido como linearidade. O poeta percebe que o tempo de vida é este afã de querer ser; as nossas esperanças, que fazem com que o futuro seja o incentivo da existência presente. Daí que Heidegger nos diria que o presente é um "sido" do futuro, é um "futuro sido".

Talvez o tempo seja na verdade uma grande brincadeira e daí seria uma perda de tempo, perder tempo com o tempo, que só é cessando de ser. Pois, o futuro, quando chega, logo é passado. Revela-se ocultando-se. O futuro se faz na espera de um tempo que se esvai no presente, o qual, quando mal nos damos conta, já se enrola no "novelo", e é passado, e ... novamente nos pegamos esperando o futuro. A eterna busca do tempo novo. O tempo brinca conosco. Mas de toda forma sabemos que ele existe, porque deixa marcas na nossa vida, porque faz sentido dentro das nossas esperanças. Além de que, de certa forma, todos nós sabemos igualmente o que é o tempo, no que se refere a relação entre o nome e a coisa. Nossos rostos falam de sua existência, mas é o relógio que se diz revelador do tempo. Que tempo quero dizer? Santo Agostinho, ao se pronunciar sobre o tempo, disse: "Se ninguém me pergunta, eu sei, mas se me perguntam e eu quero explicar, já não sei". Existe, como nos parece perceber Santo Agostinho, uma vivência íntima do tempo e outra instância do conhecimento objetivo, que o faz tornar-se anunciado.

Na verdade, cumpre-nos falar do tempo como categoria, quando na realidade preferiria que ninguém me perguntasse, pois "se ninguém me pergunta, eu sei". Quem não sabe do tempo que lhe é singular?

O tempo da nossa discussão, o tempo que tentamos falar é o tempo dicotomizado, que didaticamente separamos para compreender, para depois dizer do erro de separá-los: os tempos social e físico. Dois tempos que, separados no tempo da singularidade de nosso ser, não fazem sentido, pois "se ninguém me pergunta, eu sei".

O tempo, enquanto esquema conceitual, parte da física galileana e inaugura a ciência da natureza (o tempo físico) no ocidente. Para Galileu, o fluxo do tempo era uniforme, podendo ser regulado matematicamente. Mais tarde, Newtom (oitenta anos depois) codifica o tempo de Galileu para física afirmando que o tempo, absoluto, verdadeiro e matemático em si mesmo, flui sem relação alguma com qualquer coisa externa. Dava ao tempo independência do ambiente e mensurabilidade a seu fluxo, divorciando a medição do tempo nos eventos ambientais. O tempo único e uniforme, através de toda extensão do universo físico. Isso significa a crescente conceitualização do tempo no âmbito da física, que parece correr, não coincidentemente com a vida, mas numa linha paralela a esta, fazendo-nos crer que há um tempo físico e um tempo da vida. Daí um tempo físico e um social, tão arraigados em nosso saber fragmentado, que, segundo Elias (1998), até mesmo a ciência social passou a acreditar na existência dicotomizada do tempo.

Houve um tempo onde o homem se situava no interior do universo físico e se integrava a ele como elemento necessário (Elias, 1998). Aqui, a idéia de natureza não o excluía. O tempo da sociedade "simpatizava" com o tempo da natureza, e o tempo não tinha a homogeneidade do tempo dos relógios. O homem integrava a natureza, construía com ela sua dança no universo. A dança podia presentificar-se, por exemplo, no ritmo do movimento do sol (um deslocamento da física) para colocar as sementes na terra (uma atividade de subsistência), um impulso natural da vida. Homem e astros eram aliados no tempo singular da sua sociedade. O ciclo da vida pulsava no ciclo da natureza, que nas suas variações tornava o tempo sempre "novidade", um "acontecimento". O ser aí era sempre "presença". Esta presença consistia basicamente no pulsar simultâneo de humanidade e natureza.

Distantes do cronograma dos ponteiros, o tempo, para os povos mais antigos e para muitos ainda hoje, dá-se como tempo. Desta forma, não dizemos o tempo é, mas como nos sugere Heidegger, dá-se o tempo. O relógio está aí para nos dizer que o tempo é. Ele fala da sucessão de "agoras", "há poucos", "logo a seguir". Mas em nenhuma parte do relógio, diz o filósofo, encontramos o tempo, nem no seu mostrador nem no seu mecanismo. Para Heidegger (1991:211), quanto maior a perfeição técnica menos a oportunidade de medir sobre o que é o próprio tempo. Toma-se da representação do espaço tridimensional tal possibilidade dimensional do tempo, pensado como uma sucessão de seqüências, segundo Heidegger (1991:213). Assim, podemos dizer o tempo não é, mas dá-se, no sentido de que ele ilumina o aberto que aproxima futuro-passado-presente.

Nos povos onde o ritmo da vida fluía, ou flui, no dar-se, os instrumentos eram os movimentos da lua, onde falamos mês; os da colheita, onde falamos ano. O tempo não era progressivo (tempo newtoniano), mas tempo "advento", tempo que dá-se. O "acontecimento" que se constituía como tempo, podia ser um galo, que ali estava como relógio da natureza. Podiam ser, também, os processos familiares do ciclo do trabalho e das tarefas domésticas. Como apresenta Thompson (1988), são basicamente a sucessão dessas tarefas e a sua relação mútua uma espécie de marcador de tempo.

Assim, o tempo que a vida é era construído, elaborado e vivido juntamente com o ciclo da vida, no tempo social e relativo a ele. Após a sociedade industrial, veremos o tempo perder o ritmo simples da vida, para valorar-se como dinheiro, e como o dinheiro ser sempre escasso. Provavelmente, para nós, seja incompreensível pensar que em Madagascar, por exemplo, segundo a colocação de Thompson (1988:270), o tempo era medido pelo cozimento do arroz (equivalente a meia hora), ou pelo fritar de um gafanhoto (um momento). Os nativos de Cros River diziam que "o homem morreu em menos tempo que leva o milho para assar" (equivalente a menos de quinze minutos). No Chile, século XVII, os terremotos eram medidos por "credos", e um ovo estava cozido aproximadamente em uma Ave-Maria. Assim, parece-nos, a conotação de dizer o tempo estava mais na informação, que não tinha necessidade de ser matematicamente preciso, mas suprir o fato de que o tempo simplesmente "aconteceu". "Todos sabiam que era inútil correr atrás do mundo. Jamais alguém o encontrará". (Thompson, 1988:270)

O tempo se dava nos ritmos naturais, na inseparabilidade da vida e trabalho. O grão deveria ser colhido antes das tempestades. Os céus claros, ou os céus escuros, as sementes amareladas e cheias determinavam, a seu tempo, o movimento da vida. O trabalho podia, então, em determinados dias, ir até o crepúsculo, e, em outros, sugerir que o fogo aceso o dia todo crepitasse no ócio prazeroso da espera do próximo momento do plantio, que a lua anunciaria. A irregularidade meteorológica (chuva, sol, tempestades, ventos) reduzia ou ampliava os dias do agricultor. Esta podia alternar momentos de atividade intensa ou ociosidade, porque os indivíduos detinham o controle de sua vida produtiva (Thompson, 1988:282). A administração do tempo acontecia pela demarcação entre trabalho e vida. O trabalho fazia parte essencial e fecunda da existência, integrava-se à vida. Para esses homens, a existência tinha um sentido fluido, no devir onde dá-se o tempo. Correr atrás do mundo não fazia sentido, pois jamais alguém o encontraria, uma vez que ele ali era sempre presente, sempre "advento". Cada momento tinha um tempo que lhe era próprio, irregular.

Para esses indivíduos foi difícil entender o tempo do relógio, acreditamos que tanto quanto é para nós, hoje, estendermos nossas vidas sem ele. A despeito de tudo o que falamos, são aos ponteiros que confiamos nossas vidas e a eles igualmente atribuímos nossos cansaços e inquietudes conquistados na escravidão voluntária do tempo. Mas, na escravidão, à qual nos submetemos, sabemos que não está no tempo do relógio o fato de nossas angústias existenciais se instalarem em tão pouco tempo, enquanto sua permanência é tão lenta e duradoura. A dor tão demorada, e a alegria tão breve. A tempestade tão longa, quando o relógio deu a ela alguns segundos. Quem nos fez acreditar que o relógio marca o tempo? O problema está no fato de que o tempo métrico nos dominou tão fortemente que o tempo que vivenciamos, o nosso tempo próprio, chamamos de ilusão. A nossa experiência de tempo, aquela que nossos antepassados compreenderam como próprias do existir, o durar da existência simpatizando com o mundo, perde-se no tempo como conhecimento. Agora, como voltar a ser simples nos tempos do "tempo" contemporâneo? No tempo que se escoa na rapidez das tramas da rede da tecnologia, que se faz tempo na máquina? Tempo que, no conceito da inseparabilidade entre forma e conteúdo, sabemos sem fragmento, mas que no cotidiano de nossos dias não encontramos identidade alguma.

Hoje, nossa crença no relógio é inquestionável. Basta ver nossos dias. Esta crença foi, na verdade, como nos diz Elias (1998), um longo processo de aprendizagem, uma lenta acumulação de experiências, algumas feitas e refeitas. As leituras de Thompson (1988) e Elias (1998) distanciam-se do tempo, tal como concebido desde Descartes até Kant, e até além dos mesmos, onde os indivíduos seriam dotados de estruturas específicas cujo tempo é uma delas. A noção de tempo inata, independente dos saberes de uma sociedade, ou do tempo, não se aprende. Num dado momento, desprendemo-nos da natureza, fragmentamos nossas relações com ela, fazemos dela um objeto para nossos estudos e a matematizamos. Impomos a ela um tempo planejado. A cronologia centrada no mundo físico separou-se da antiga cronologia centrada no homem. Natureza e indivíduo cortaram seus elos.

Para Kant, o tempo, bem como o espaço, já nos estavam dados a priori, ou seja, eles não dependiam da experiência. A questão do tempo deriva, no pensamento kantiano, do espaço. O espaço, para o filósofo, é o suposto da experiência, pois não podemos ter experiências senão no espaço. Assim, o espaço é, a priori, inato no indivíduo, não é um conceito (uma unidade do múltiplo). O espaço é único. O mesmo movimento do pensamento, Kant empresa para o tempo. Quando algo acontece, este acontecer já implica no tempo. Tal como acontece com o espaço, podemos conceber o tempo sem algo, mas nunca algo que não seja no tempo. O tempo, portanto, independe da aprendizagem, ele nos é dado a priori.

Recordando rapidamente pontos dessa história, observamos que, no período medieval, quando se falava de natureza, tinha-se um aspecto da criação divina que abarcava a totalidade do universo. A cronologia centrada na natureza se impôs com Galileu, com o seu esforço por "descobrir regularidades imanentes às ligações observáveis entre os acontecimentos, regularidades estas que, inexplicavelmente, deixavam-se apresentar com a ajuda de equações matemáticas, e que, uma vez assim apresentadas, logo adquiriram aos olhos dos homens o estatuto de leis eternas, presentes no fundamento de todas as transformações observáveis na 'natureza'" (Elias, 1998:86). Era, na verdade, o grande esforço do humano buscar o imutável e eterno no devir dos acontecimentos. Como a natureza, o tempo aos poucos também foi sendo matematizado, inserindo-se dentro de conceitos, tais como peso, distância, força, que se distanciavam da vida simples da existência, do tempo social como "presente" , a cada sociedade. O tempo perdeu a graça fugaz de ser inventado no acontecer de cada tempo, dentro das comunidades, das falas dos indivíduos, ao pé do fogo. O passado deixou de ser o remexer do baú dos mortos (no silêncio do sótão), repletos de vida, para ser o dos troféus e dos diplomas expostos na sala. No baú dos mortos, cada peça tirada do seu interior tratava-se de um "advento"; na parede dos troféus, o tempo "imprime-se".

Passou a ser comum dizer que se mede o tempo. O indivíduo moderno não precisa mais da natureza para lhe dizer o tempo. Dentro dos Shopping, fechados propositadamente para direcionar nossos olhares, não temos mais ligações com a tempestade que se arma lá fora, ela nada significa. O tempo da colheita, onde ela interferiria, não é mais nosso problema, e nem dos que ganham tempo plantando com as técnicas artificiais, nas quais a tempestade nada mais tem a ver. O tempo ali é outro, matematizado, é o tempo que temos, o que nos interessa. Tempo é dinheiro. Se o tempo nos falta, o relógio acusa, mas se ele nos sobra, sai da alçada do relógio e já não mais sabemos o que fazer com ele. Já não temos mais o fogo no pátio, para nos acomodar a sua volta. Perdemos o hábito de nos acomodar ao fogo. Somos contemporâneos de um tempo onde o tempo sofre de escassez. Nossa aprendizagem foi longa, mas aprendemos a ser submissos ao tempo.

O tempo assumiu um caráter de instituição, onde os relógios e os calendários cumpriam um papel ordenador. Determinavam e afirmavam o tempo numa continuidade evolutiva, mesmo diante de uma multiplicidade de descontinuidades políticas, religiosas e outras. É bastante interessante a forma como Thompson (1988) apresenta a trajetória de disciplina que o indivíduo vai se submetendo até completar sua aprendizagem de submissão ao relógio. A busca do autor se faz dentro das poesias, da literatura, dentro do tempo da arte, esse tempo que é sempre presente quando a tomamos pela via da imaginação.

Segundo Thompson (1988:270), o relógio é um apetrecho que aparece como público no século XIV e nas fachadas das igrejas no final do século XVI. Seu aparecimento foi de grande valor para disciplinar os homens na era industrial, que exigia sincronização do trabalho. Os indivíduos pouco conheciam sobre as tramas do tempo industrial. O relógio era o símbolo de uma melhoria de vida, que na verdade tramava contra seu próprio dono. Na tarefa do trabalho artesão, sem horário padronizado, o relógio unia-se à indústria para impor a sincronização da produção, e tempo nessa sincronicidade era dinheiro. O tempo passa a ser meio de exploração de mão-de-obra. Conhecemos então o controlador do tempo, a folha do controle do tempo, que, diante do relógio, disciplinava os indivíduos a um comportamento antes desconhecido. De acordo com o relato de Thompson (1988), foi bastante árdua a luta dos controladores do tempo a fim de disciplinar os trabalhadores. Havia a necessidade de impor um tempo contra o "ócio". Na verdade, antes do relógio ter chegado ao alcance dos artesãos, foi lhes ofertado um relógio moral interior. Este acusava-os de indisciplinados, preguiçosos, indolentes, perder tempo era prestar contas no juízo final.

As literaturas sobre a industrialização, diz Thompson (1988:300), pensam a questão partindo de algo que declara um homem na plantação, de Camarões, que diz: "Como poderia um homem trabalhar desse jeito, dia após dia, sem faltar nunca? Ele não morreria?". Isso nos mostra o quanto nossa aprendizagem sobre o tempo fragmentado da natureza foi árdua; assimilamos lentamente o que a industrialização foi nos impondo, fora desse "elã vital", que nos conecta à natureza. O tempo, fizeram-nos acreditar, é qualidade de vida, que deve ser bem aproveitado, que devemos fazer render dinheiro e, portanto, sem esta idéia elaborada de tempo, esse homem culto, industrial, não teria surgido. Esta construção de tempo pelos teóricos do crescimento, sempre nos fizeram acreditar que as culturas populares eram ociosas, intelectualmente vazias, desprovidas de espírito e terrivelmente pobres, como acusa Thompson (1988:300). Talvez este seja o tempo de reaprender a nos acomodar junto ao fogo, em busca de um tempo perdido.

Porém, o que observamos é que a construção do tempo útil está sempre envolvida por interesses, o que faz afirmar a categoria do tempo como instituição. Na interessante pesquisa de Goifman (1988) fica evidente a questão. No interior da penitenciária, apresenta o autor, a relação entre o tempo ocioso e o tempo útil (norma) se inverte, e o tempo, antes ocioso, é então tempo útil. Todas as questões relacionadas ao tempo se estruturam no "matar o tempo", até mesmo o trabalho, dentro desse sistema se inverte. Tempo aqui não é "dinheiro", trabalhar é "matar tempo", ocupar o tempo. Eis um lugar, onde o perder tempo é válido. O tempo ali é o tempo fugaz, o movimento circular, sempre em torno de si mesmo, sem nenhuma direção, sem necessidade de ser medido. É o tempo morto. Mas, ainda o tempo da instituição. O presidiário, diz Goifman (1998), aprende o tempo social da prisão. O tempo de espera, o tempo que não passa, da eternidade, da ociosidade, da imponderada noção de justiça. É assim que dormir, é sumir, para se encontrar com o tempo "próprio", fora desse tempo social da prisão. Seu tempo próprio seria então o tempo da liberdade.
Eu ainda diria, então, que há tempos...
Que se não me perguntam eu sei...
O tempo do poema.

Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,

Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?

(Dante Milano, 1948)

Ocorre-nos, depois de tudo o que falamos, pensar o tempo integrado ao universo dos antepassados e o tempo da obra de arte, com relativa semelhança. Esta tem um tempo "alternativo", bastante similar aos desses povos. Para eles, seguindo os passos de Elias e Thompson, leituras centrais para este texto, o tempo não estava dado com acumulativo e métrico. Tratava-se, ao que parece, de uma descrição do ciclo, uma percepção de um determinado espaço e não de uma medida. Simpatizavam com o tempo. A vida fluía sem a monotonia, o mecanicismo e o vazio dos ciclos iguais. A existência tinha eco no organismo vivo do mundo. A obra de arte, afirma Pareyson (1993), tem a propriedade de ser um organismo vivo. Ela nos proporciona a vivência de um tempo alternativo, frente a um cotidiano instituído e aparentemente imutável. Aprendemos com a obra de arte um outro tempo e um outro espaço. Ela nos propõe um tempo atual, a contemporaneidade entre o passado e o presente, onde se realiza constantemente um mundo como novidade. Um tempo sempre atual, na inteireza da existência. Retém o transitório, numa nova duração. E o "existir é uma eterna ida", é a presença da andança; à percepção do poeta, um tempo eternamente presente. Este nos parece o tempo próprio da arte que se nos impõe. Seria esse o tempo, da essência da estrutura orgânica, que está na vida e na arte?

Assim, o tempo anda, mas permanece tempo. Sua determinação, diria Heidegger (1991:206), é através do Ser. O Ser permanece, não desaparece, presenta-se. Percebeu bem o poeta, quando indaga se o tempo vai para frente ou para trás, e o constata andando, andando, andando... Essa sua presença permanente, embora passando. Como o Ser, para Heidegger, dá-se, também o tempo dá-se. Assim, a obra de arte dá-nos o aberto do tempo, e nos revela o essencial nele, a existência. Desoculta um tempo, que é sempre a presença de sua andança, que não vai para frente e nem para trás, porque é sempre novidade. O tempo que se inventa e se constrói no processo do presentificar-se do Ser. Que se constrói no "olhar" da vivência, na singularidade das afinidades sugeridas. Passear nossos olhos sobre a obra é palpar um tempo que dá-se, um tempo que ilumina um aberto e o mantém. O tempo é visto por Heidegger (1991:215) "como âmbito do aberto, no interior daquilo que lhe é próprio", o tempo próprio da obra nos revela esse aberto, que nada mais é senão a vida.

E a vida? O que seria a vida, senão a eterna andança do Ser, o lugar onde se enraíza o tempo? Diríamos que sábios mesmo são os poetas que fazem escorrer os relógios, no desconcerto das formas, "presentando" o tempo que a vida é. Lembre-se da obra de Salvador Dali, na obra, "A Persistência da Memória", 1931.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
COMTE-SPONVILLE, André. O Ser-Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1998.
GOIFMAN, Kiko. Valetes em Slow Motion - a morte do tempo na prisão: imagens e textos. Coleção Momento. Campinas (SP): UNICAMP, 1998.
HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. (Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1991.
MORENTE, Manuel G. Fundamentos filosóficos. São Paulo: Mestre Jou, 1980.
NUNES, Benedito. Passagem para o poético. São Paulo: Ática, 1992.
PAREYSON, Luigi, Estética - teoria da formatividade. São Paulo: Vozes, 1993.
REVISTA Sexta Feira, n. 5. Tempo. São Paulo: Hedra, 2001.
THOMPSON, Edward. Costumes comuns - estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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