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A Arte nas aventuras da interpretação

Anita Prado Koneski


Falar da interpretação é falar, de certo modo, do indivíduo frente ao mundo. A interpretação com relação à arte não segue outro caminho, senão o mesmo trilhado pelo indivíduo no seu modo "estar no mundo".

Partindo dessa questão concordamos com Vattimo, quando diz que os discursos mais recentes que permeiam o pensamento no fim da época moderna e da pós-modernidade nascem e se posicionam frente à realidade a partir das reflexões de Nietzsche e Heidegger. Evidentemente que ao partirmos nossa reflexão desse pensamento, já estamos escolhendo uma posição diante da realidade e um caminho para consolidar a presente exposição.

As reflexões que nascem com Nietzsche e Heidegger e que permearam o século XX, refletindo a queda da metafísica clássica, promovem uma série de questionamentos, que implicam os diversos âmbitos da vida humana, acarretando "outra" concepção de mundo e consequentemente "outra" abordagem para a produção artística.

As críticas de Heidegger ao humanismo, conforme abordado pela tradição e o anúncio de Nietzsche do "niilismo", do "super-homem", do "mundo como fábula" , constituem-se numa denúncia ao caos que a humanidade enfrenta.

Os dois filósofos citados, basicamente, colocam em questão o pensamento do "fundamento" ou seja, o pensamento forte estabelecido como verdadeiro e único para a leitura da realidade. Esse "pôr em questão o fundamento", que encontramos em Heidegger e Nietzsche, segundo Vattimo, define o que chamamos de pós-modernidade. O fundamento constituía-se no centro da modernidade. Nela, o pensamento se dava progressivo, no sentido de apropriação e reapropriação do fundamento. A apropriação e reapropriação nada mais fazia que fortalecer a origem do pensamento dado como verdade. O fortalecimento da origem era determinante para o valor do pensamento. A idéia de progresso se fortalecia nela. Verificamos que as conquistas teóricas e práticas da história do ocidente aconteciam nas recuperações, renascimentos e apropriação no pensamento de origem. Assim, podemos explicar o que afirmamos no início. O pós de pós-modernidade, conforme afirma Vattimo(1) significa uma espécie de despedida da modernidade, na sua postura de livrar-se das suas lógicas de desenvolvimento, na sua crítica em busca de uma nova postura para a leitura do mundo e consequentemente da arte. Procura essa que está claramente determinada em Nietzsche e Heidegger, na relação crítica com o pensamento ocidental.

A posição dos referidos filósofos é uma posição crítica perante o estabelecido como verdade. O que institui a pós-modernidade é exatamente o fato de que ambos não poderiam criticar o fundamento para posteriormente instituírem outro, como explica Vattimo. Portanto, não se trata de buscar outro fundamento mais correto. Ou, diríamos, não se trata de ter um fundamento. O fato de não se buscar um fundamento implica não se instituir verdades, sendo deste ponto que nasce a presente discussão. Não instalar verdades significa não ter uma origem para buscar o Ser. Encontramos como ponto de partida, em Nietzsche e Heidegger a negação da estrutura fixa, estável para abordar o Ser, para se fundamentar em estruturas, aparentemente instáveis. Esse é o ponto, ao nosso ver, que determinará um outro olhar para a realidade.

Se averiguarmos o pensamento humano que chamaremos de tradição, em relação ao dado após as reflexões de Nietzsche, Heidegger e de Kierkegaard, observaremos que o questionamento está na noção de verdade enquanto conformidade. Tais pensamentos colocam em cheque a verdade conforme abordada pela metafísica clássica, ou seja, a da adequação à coisa e ao estado de coisas. A adequação instala no pensamento e na existência humana uma certa tranqüilidade. As certezas na existência humana atuam como segurança. As incertezas, por sua vez, acarretam uma sensação de vazio infinito. A certeza é um dado de comodidade, de estabilidade, instalar-se nela significa não travar lutas.

A referida comodidade, esse anseio de apropriar-se de algo estável fez com que a multiplicidade de realidades que constituem o mundo humano ficasse diluída a uma verdade única, originando um estado de dominação nas questões teológicas, políticas e estéticas. Devem-se a tais posicionamentos as punições de ordem religiosa e políticas que temos assistido ao longo de nossos séculos. Lembramos as questões ligadas as colonizações, os preconceitos de raças e culturas, o desconhecimento da alteridade frente o diferente. Pois uma vez estabelecido um conceito como paradigma de verdade, tudo será avaliado mediante a conformidade com o mesmo. Assim, origina-se o pensamento preconceituoso de que o diferente não é verdadeiro. Dessa maneira, podemos deduzir que se o pensamento do "fundamento" aparenta dar à existência humana uma determinada segurança e comodidade, de outro desestabilizava a convivência entre os homens, desde que excluía o diferente. Uma leitura de mundo aberta, conforme nos propõe Nietzsche e Heidegger, vislumbra a multiplicidade do Ser e a fecundidade de suas possibilidades como verdade.

E' a partir daí que Vattimo dá o pensamento do "fundamento" como violento, pois trata-se de uma postura seletiva diante do mundo, desde que se posiciona mediante critérios pré-estabelecidos. Seu interesse está voltado para o universal, desprezando o individual. Suas probabilidades estão sempre controladas.

O pensamento da fundamentação é de certa forma um pensamento medroso, pois não está aberto para o novo. Ele não se arrisca. Fica tímido diante do vazio, que se instala na falta de certezas que assegurem sua abordagem de mundo. Esse vazio acarreta o desconforto da falta de familiaridade com o mundo, e isso é assustador. Ao passo que lançar-se numa nova visão de mundo é instalar-se na clareira aberta para renovadas possibilidades que a realidade se oferece. É deixar que o mundo seja real "aí", pois o pensamento da fundamentação obriga o real a ser "uma idéia do real", desde que o enquadra numa lógica previamente estabelecida em favor de uma adequação com determinado critério de verdade. Dessa maneira, observamos que o pensamento do fundamento se faz a si mesmo feitchizador , desde que consolida o logos e desconhece o mito. Ao consolidar o logos, tende a desconhecer a experiência da arte como forma de conhecimento do mundo, por não enquadrá-la dentro de seus paradigmas. À arte falta a pretensão de impor ao mundo verdades, mas sobra-lhe desejo de abrir clareiras de acesso a novos "olhares" ao mundo.

A partir dessas questões podemos concluir que o pensamento concebido enquanto consolidador de verdades, no que se refere a nossa existência, não abre espaço para o conceito individual de homem, somos pensados dentro de um determinado padrão, firma-se um ideal de homem único. Na modernidade, o ideal de homem era o homem europeu. O padrão de homem utilizado pelas colonizações era o europeu e o paradigma para colonizar era a cultura européia. Assim, o pensamento da fundamentação confrontava-se com os colonizados; impunha suas verdades, sua cultura, seu padrão de homem, sem dar atenção ao "alí" instalado. Traziam pronto o molde para enquadrar seus conquistados. A idéia de progresso lhes assegurava a confiabilidade de que os "primitivos" chegariam, um dia, à perfeição dos colonizadores. O mundo, embora que lentamente, caminha para um processo de reconhecimento da alteridade. Porém, seu caminhar parece lento e muito nos assusta ainda a concreticidade dos fatos.

Parece que Nietzsche e Heidegger nos oferecem alguns instrumentos para compreender essa passagem para uma outra postura diante da realidade, quando fazem a crítica da imagem da realidade ordenada racionalmente com base num fundamento. Ambos elaboram seus pensamentos a respeito do mundo opondo-se a um princípio único. Libertam a multiplicidade das aparências das condenações platônicas, que instituem um ideal transcendente gerador de hierarquias, privilegiador de categorias unificadoras.

Ambos vão pensar o Ser, a realidade, enquanto acontecimento, portanto se queremos falar do Ser temos que compreender em que ponto estamos. Ou seja, interpretar o Ser é fazer a leitura da nossa condição ou situação, desde que o Ser nada é fora da sua condição. Verificamos a partir daí, conforme afirma Vattimo (2), que o que chamamos de pós-modernidade não é apenas uma novidade no que se refere ao moderno, mas o é no sentido em que dissolve a categoria do novo, pois não dá mais importância ao avançar progressivo. Deixa de existir o mais avançado ou o mais atrasado em relação a história, pois à história vista como um processo progressivo unitário fica dissolvida. Acontece a não-historicidade. Não existe mais o movimento progressivo linear do ser. Estamos diante da queda dos paradigmas absolutos e fixos.

Visto conforme descrevemos acima, o Ser está longe de ser adequação a uma verdade estabelecida. Ele não é adequação, mas desvelamento. A verdade aqui se institui de outra maneira e passa a ser um espaço de abertura onde o Ser se dá. Onde o Ser se desvela nas suas infinitas possibilidades, constituindo-se num mundo repleto de abordagens, que não existe como determiná-lo em estruturas fixas. Assim, a verdade vai se dar através dos encontros que o indivíduo estabelece com o Ser, com a realidade. A luz não é o final do poço, mas a oscilação entre sombra e luz, onde o Ser se revela e se esconde, conferindo várias faces ao seu aparecer. Todas, faces que lhe pertencem sem distinção.

O pensamento de Heidegger vai, então, perguntar pelo primordial, pelo espaço aberto, pela clareira que possibilita o surgimento dos entes particulares e não os entes vistos no conceito geral das coisas. O interessante é que para Heideggeer o sentido de clareira não é sinônimo de luz . Essa luz não se trata de certeza no final do poço. A clareira é a possibilidade de luz e de sombra, do claro e do escuro, do presente e do ausente. Pensar a clareira é pensar para além do que nos revela objetivamente, que contém uma infinidade de possibilidades de revelar-se. Assim, as sombras nos levam para além dela, talvez para a luz, mas a luz, por sua vez, não aponta para uma verdade única, apenas desvela uma, ou outra, das infinitas possibilidades da realidade.

Os filósofos citados priorizam o indivíduo diante do mundo. O encontro indivíduo e realidade, o "estar aí". O fato fenomenológico existencial é o ponto de partida para que se concretize uma postura diferente diante do que se nos apresenta para interpretar. A mudança é, digamos, radical e traz consigo uma série de discussões que pelo próprio devir da abordagem não exige fechamento. A interpretação do mundo não se estagna numa única postura, mas na multiplicidade.
A partir de então, podemos perguntar: O que muda na nossa concepção de indivíduo? O que muda no nosso enfrentamento com o mundo, nas nossas relações humanas, na leitura da obra de arte e no fazer artístico?

Podemos tentar relatar as mudanças, embora tenhamos a consciência de que jamais a relataremos na sua totalidade, pois as mudanças interferem subjetivamente em cada indivíduo e a essas mudanças não temos acesso. Mas, de maneira ampla, é importante dizê-las. O Ser que será objeto de desvelamento não se deixa mais aprisionar pela lógica formal, ou seja, ele não se constitui como um fato, no seu imediatismo. A postura diante do Ser, da existência, da realidade, é de interrogação renovada por seu sentido. Ele não se constitui mais numa face única e fixa, mas em mil faces. O sentido buscado no Ser não é aquele que pensamos ter ele "em si", mas o sentido que reconhecidamente ele tem na totalidade de suas relações significativas, recebidas do mundo no qual se insere. A partir daí teremos que toda a referência do mundo, dos outros e de nós mesmos se faz significativamente nas relações estabelecidas.

Toda a abordagem do mundo fica modificada por esse prisma, pois o que conta é a vivência, a experiência, o modo singular com que cada indivíduo aborda o Ser. Não existem fatos, mas apenas significações, essa parece ser a questão básica. É a liberdade da existência, do existir, no aqui e agora. O "como" e "quem" somos a cada momento que nos encontramos com o mundo. Essa abordagem dissolve com o pensamento da fundamentação, o pensamento certificador, que promove a padronização e faz dos indivíduos, ninguém. O homem é prioritariamente o lugar onde o mundo acontece como entidade pública, mas cada indivíduo é também uma entidade singular. O pensamento heideggeriano, conforme Critelli (3), comprometido com o desvelamento e a liberdade, "deixa em liberdade, primordialmente, a existência: para 'apropriar-se'. Perder-se e apropriar-se do homem (daisen)." Cada indivíduo vai compreendendo-se no mundo à medida que se confronta com o Ser. É um encontro peculiar de cada um, que dá respostas diferenciadas, construindo a realidade e se construindo nela. Estamos muito distantes do pensamento cartesiano que pensava o homem, o eu, como ente isolado, subsistindo por si mesmo.

O pensamente de Heidegger e Nietzsche se volta contra a estagnação das coisas nas teorias e a visão totalizante da realidade. Reivindica a reelaboração do olhar para a realidade, e parte de uma proposta fundamentada na ousadia de um mundo como constante ato de vivência, de rediscutí-las e de negá-las, se for o caso. O indivíduo nessa perspectiva está inteiro no mundo e contém em si o mundo. Cada um experimenta o mundo no seu próprio corpo, através de suas realizações concretas, e do seu desejo constante de reaprender o mundo, pois sabe que nada nele é estático. Trata-se de um corpo atual, como diz Merleau-Ponty (4), um corpo que recusa o dualismo cartesiano entre res cogitans e res extensa. Um corpo que pensa e que é feito do mesmo estofo do mundo. A experiência torna-se primordial na absorção do mundo e se faz na interseção das experiências uma nas outras, ou seja, o mundo não se constitui num ser puro, mas acontece nas relações que mantemos com o ser e com a significação que atribuímos a ele. Provavelmente esta compreensão esteja mais arraigada do que nunca nas palavras do poeta quando ele diz:

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E sei dar por isso muito bem...
Sei Ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...


Em outra poesia diz o poeta:

O mundo não se faz para pensarmos nele
(pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
(5)

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

E o poeta nos diz:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
(6)

A busca dessa eterna novidade do mundo, à qual se refere o poeta expressa as inúmeras possibilidades que o Ser se oferece para sua abordagem. A eterna novidade do mundo se realiza nos olhares singulares que cada indivíduo lança ao mundo. Assim, cada um tem o seu eu, do tamanho do que vê. Por isso a aldeia interna de cada um pode, sem dúvidas, atingir o tamanho de outra terra qualquer, porque somos do tamanho do desejo que temos de renovar nossos olhares para o mundo.

Observamos que a arte nos proporciona essa visão ampliada do mundo, através de uma linguagem não formal. Por si só a arte se constitui na dissolução da lógica formal, na ausência de fundamentações prévias, ao mostrar o devir do mundo infinitamente facetado. As questões relativas à fundamentação ficam anuladas quando na briga entre logos e imaginação, podemos ampliar as possibilidades dizendo que a imaginação diz o ser tanto quanto o logos, trata-se apenas de um "outro" modo de dizer a realidade.

A possibilidade de pensar o mundo e o homem nele, de pensar as questões relativas à expressão artística, podemos dizer, não é mais o mesmo a partir de pensadores como Nietzsche e Heidegger. A interpretação do mundo, agora, se "desvela" aos "homens livres", ansiosos para ir além.

A obra de arte, abordada conforme a visão de mundo que desejamos privilegiar não se arroga um saber fixo e unilateral e nem se submete a regras para justificá-la como tal. Ela está "aí" e nos diz que a realidade não é unívoca, mas ambivalente e contraditória. As obras de arte fazem jus aos desejos da realidade, dizem a multiplicidade do mundo, ou melhor, é através dela que o mundo objetivo se revela verdadeiramente aos nossos olhos. São elas que nos ensinam a quebrar a rigidez de nossos olhares para o mundo. Oferecem um caminho fecundo para a renovação que propicia a aventura da diferença, uma abertura para os jogos das possibilidades de estarmos frente ao nosso existir como humanidade.

1) VATTIMO, O Fim da Modernidade. Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna, p. 8. (voltar)
2) VATTIMO, O Fim da Modernidade. Niilismo e hermenêutica na Cultura Pós-Moderna, p.11. (voltar)
3) In: Temas Fundamentais da Fenomenologia, p. 24. (voltar)
4)MERLEAU-PONTY, O olho e o Espírito, p. (voltar)
5)PESSOA, ( Alberto Caeiro) O Guardador de Rebanhos, p. 204. (voltar)
5)PESSOA, (Alberto Caeiro) O Gardador de Rebanhos, p. 208. (voltar)

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Bibliografia

HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989.
MARTINS, J., DICHTCHEKENIAN, Maria Fernanda S. F. B. Temas Fundamentais da Filosofia. São Paulo: Editora Morais, 1984.
MERLEAU_PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Editora Abril. 1975 ( Os Pensadores)
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade. Niilismo hermenêutica na Cultura Pós-Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
VATTIMO, Gianni. Filosofia, Política, Religion. Más allá del "pensamiento débil" Oviedo: Ediciones Nobel S. A., s/d.

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