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(E)xperiência Subterrânea: em busca do risco
Trabalho apresentado em Seminário do VII Festival Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis, 1999.

André Carreira

(E)xperiência Subterrânea (1)foi criado no primeiro semestre de 1995 com o objetivo de representar uma continuidade nas pesquisas realizadas pelo grupo Escena Subterránea de Buenos Aires do qual eu era diretor. Atualmente, este grupo se dedica fundamentalmente a explorar os espaços não teatrais, particularmente as instalações do metrôs de Buenos Aires.
O (E)xperiência Subterrânea surgiu com o fim de estender as pesquisas de exploração dos espaços hostis da cidade. Nossos espetáculos buscam aqueles lugares do cotidiano dos habitantes da cidade para transformá-los, resiginificando a sua funcionalidade.
O eixo desta pesquisa tem sido a descoberta e ocupação de espaços cênicos urbanos e o estudo de técnicas do ator que permitam o melhor aproveitamento destes espaços públicos. O (E)xperiência Subterrânea busca um teatro que será subterrâneo no sentido de descobrir uma teatralidade a partir dos subterrâneos do nosso cotidiano.
Nosso objetivo é criar no espaço público uma interferência cênica que permita um momento de ruptura do cotidiano, abrindo assim aos espectadores da rua um âmbito de sensibilização.
O trabalho do (E)xperiência Subterrânea tem como um dos seus principais objetivos criar espetáculos a partir da apropriação de espaços teatrais não convencionais. Nossa atenção sempre esteve centrada nos espaços urbanos de intensa circulação de cidadãos, pois, quando fundamos o grupo tínhamos como foco de trabalho a disputa da atenção do público ocasional. Queríamos criar situações de representação que rompessem o cotidiano do pedestre comum.
Esta classe de proposta fez com que Experiência Subterrânea alcançasse a silhueta de prédios para sua encenação de "A Destruição de Numância" (Miguel de Cervantes) com a utilização de técnicas de alpinismo. O uso destas técnicas de deslocamento em altura buscavam criar uma relação o mais estreita possível com o texto dramático ao mesmo tempo que se aproximava dos elementos de risco físico e, consequentemente da criação do estado de prontidão no espectador.
Trabalhar a partir da abordagem e apropriação teatral da silhueta urbana, supõe a consciência da transformação do uso do espaço da cidade, e isso possibilita que surjam novos vínculos entre espetáculo e público. Estes vínculos se edificam através da resignificação do uso do espaço urbano, da transformação da condição dos transeuntes e da comunhão no ato de compartilhar a situação de risco e o conseqüente o estado de prontidão.
Tomando como base estes elementos surgiu a necessidade de realizar uma reflexão acerca da função do risco físico no processo de formação dos atores, já que havíamos experimentado de forma viva o papel do risco físico na construção de espetáculos de apropriação da silhueta urbana.
Como parte de um trabalho desenvolvido na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) antes da fundação do grupo, trabalhei com Grupamento de Busca e Salvamento do Corpo de Bombeiros que nos ofereceu um curso de formação em técnicas aéreas para atores e inclusive nos assessorou na montagem das estruturas de cordas de espetáculos no centro da cidade.
Esse apoio foi fundamental para possibilitar que o grupo desenvolvesse técnicas que funcionaram como conformadoras da linguagem grupal. Isso também obrigou aos atores a uma nova aprendizagem de técnicas corporais que se combinassem com o uso das técnicas de altura. Esse treinamento exigiu que o grupo abrisse espaços para outros classes de treinamentos, assim trouxemos de Buenos Aires o diretor Martin Joab e o acrobata Leandro Aita para realizar oficinas de violência cênica, incluindo lutas e esgrima.
Este tipo de atividade foi fundamental para conformar o perfil das técnicas que sustentaram o início do trabalho e contribuiu decisivamente para a estruturação da estética do grupo.
A partir do desenvolvimento desta linguagem grupal nosso objetivo, com O Homem de Cristal foi construir uma performance que tomasse do próprio âmbito espacial os elementos mais mobilizadores possíveis para, a partir deles, criar as seqüências dramáticas que comprometessem o público no seu desenrolar. Assim surgiram as cenas de corridas intensas e finalmente, as lutas e tiros. Foi com base na experimentação do risco que pensamos em criar uma nova classe de vínculo com o público acidental que constitui o pedestre usuário da rua transformado em espectador.
Nossos projetos de montagem partem do desejo de realizar experimentação com as técnicas de interpretação e com o próprio discurso do teatro de rua. A idéia de dinamismo - uma peça em movimento - se deve à percepção de que é necessário provocar no público o desejo pelo desvendar dos acontecimentos. O Homem de Cristal se propõe a ser um jogo para o pedestre, um jogo que instigue ao cidadão da rua a descobrir suas regras e encontrar respostas no desenvolvimento da peça e no movimento pelas ruas.
A possibilidade de fazer o público conviver com um espetáculo que se desloca por entre o seu espaço de uso cotidiano permite que o teatro ganhe novas significações para este público que quase com certeza não tem o hábito de ir às salas teatrais.
Antes do tema do espetáculo, a própria linguagem cênica de O Homem de Cristal já se propõe a estabelecer os elementos que constituem o eixo do que nós acreditamos deve ser o fenômeno espetacular. Pretendemos que o espectador se veja envolvido no processo de construção do momento lúdico, pois, dado que a encenação não trata de dissimular a teatralidade, não busca se mimetizar com a vida cotidiana, oferece ao público o próprio teatro como objeto de gozo.
Apesar de que nesta montagem os atores se metem entre as lojas, cruzam as ruas, saltam de janelas representando cenas de violência policial – coisa tão comum no cotidiano – não há no nosso projeto teatral nenhuma proximidade com as formas chamadas do teatro invisível. Pretendemos que o teatro de rua seja um espetáculo que transborde teatralidade. Não pretendemos que exista confusão entre o teatral e o cotidiano.
Trabalhamos com a idéia de que neste tipo de espetáculo é muito importante que os espectadores casuais, aqueles cidadãos que cruzaram com a cena enquanto caminhavam pela cidade, levem alguma imagem sobre a qual pensar e conversar no resto do dia. Por isso nosso espetáculo está estruturado a partir de fragmentos que podem ser recebidos como pequenas totalidades. Por outro lado, como se trata de uma cena em movimento sempre supomos que o público terá dificuldades de ver todas as seqüências pois estas muitas vezes ocorrem de forma simultânea e separadas por muitos metros na rua.
Da experiência da rua, do contato direto com os elementos do risco físico, o grupo dirigiu sua atenção para as questões referentes ao ator nestas condições de risco. Foi então quando nosso trabalho sofreu uma importante mudança com um aprofundamento de nossa reflexão sobre o trabalho do ator e o seu treinamento. Consequentemente, cada novo projeto do grupo busca sondar zonas que representem desafios aos atores, tanto ao nível físico como do processo de interpretação.
Esta preocupação relacionada ao trabalho do ator se refletiu em uma maior dedicação dos atores do grupo à realização de um treinamento constante. Um passo importante nesta etapa foi a realização de sessões de intercâmbio técnico com a Companhia Periplo de Buenos Aires. Neste processo o grupo realizou para salas o espetáculo Álbum Sistemático da Infância, texto de Daniel Veronese.
Atualmente, o (E)xperiência Subterrânea busca combinar o maior rigor artístico e técnico possível com a exploração dos elementos do risco para fazer um teatro que constitua momentos de forte vinculação com o público. Para nós este teatro deve ser um acontecimento de ruptura ainda que momentânea da ordem da rua.

Florianópolis, janeiro de 2.000

Notas

1(E)xperiência Subterrânea está formado por André Carreira, Jaqueline Valdívia, Márcia Nunes, Renato Turnes e Vanessa Damasco

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