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A NOÇÃO DE RISCO FÍSICO E A FORMAÇÃO DO ATOR
Texto publicado no livro ETNOCENOLOGIA, Biao, Armindo e Greiner, Christine (org). Sao Paulo: Annabluma, 1998.

André Carreira

No processo de abordagem e apropriação teatral da silhueta urbana, na transformação do uso do espaço da cidade através do fenômeno teatral, surgem inquietudes relacionadas com as possibilidades de se estabelecer uma estrutura que construa vínculos sólidos entre espetáculo e público.
As qualidades narrativas de um texto espetacular lançado no espaço urbano, não são suficientes para criar um lugar de relações profundas entre "fazedores" e "observadores", é necessário buscar a criação de uma esfera de sensações propostas pelo risco físico pois, este permite uma transmissão de sensações que são organizadas a partir da percepção dos possíveis efeitos dos gestos e dos deslocamentos dos atores quando este se projetam no espaço aéreo evidenciando a possibilidade da queda e do desastre. Isto cria com o observador um fio de contato que se fortalece pela própria conexão e pela convenção silenciosa de que não ocorrerá o efetivo desastre.
Diferentemente das práticas circenses, onde a iminência do acidente opera como o referencial que permite avaliar (e aplaudir) a qualidade da destreza do performer, no fenômeno teatral o risco físico se articula com a edificação das estrutura ficcional. O risco não é um elemento separado, particular, exclusivo, senão um componente que constroe as possibilidades da ficção.
O ator submetido ao exercício do risco estará obrigado a elaborar caminhos diferenciados dos tradicionais na construção da ficção e das personagens. O funcionamento do corpo será obrigatoriamente recosntruido no sentido de que os apoios, a voz, a gestualidade terão que encontrar novas modulações. O equilibrio entre a performance dramática e a esperimentação do risco conformará o lugar essencial do trabalho do ator.
Será desde este lugar que o ator se verá comprometido com a tarefa de se expor sob condições que demandam uma multiplicação dos focos de atenção, e pelo menos uma duplicação na ação. Isto é, o ator deverá construir seu trabalho ficcional no mesmo momento em que estará obrigado a cuidar dos procedimentos que administram as quotas de risco propostas para as ações cênicas. A duplicidade, própria do trabalho do ator, ganha neste caso características particulares, pois, não se trata apenas da dupla existência real/ficcional, senão de uma radicalização da realidade que gera uma qualidade ficcional particualr.
O que se busca com o risco é uma espécie de estiramento da realidade, transformano-a em uma supra realidade pois o "fazedor" estará deslocado do seu campo real. Assim, chegaríamos a ter tres planos sobrepostos: o cotidiano do ator, o cotidano submetido ao risco e a geração do ficcional.

 


A NOÇÃO DE RISCO FÍSICO E A FORMAÇÃO DO ATOR

As reflexões consignadas neste trabalho surgiram a partir da experiência desenvolvida no contexto de realizações teatrais proposta para âmbitos não teatrais. Estas experiências se referem ao trabalho realizado pela Compañia Teatral Escena Subterrânea de Buenos Aires e pelo o Grupo Teatral Experiência Subterrânea de Florianópolis.
Ambos conjuntos se formaram com o fim de buscar a criação de espetáculos a partir da apropriação de espaços não destinados ao fenômeno teatral. Nossa atenção esteve centrada nos espaços urbanos de intensa circulação de cidadãos, pois, nosso objetivo era disputar a atenção do público ocasional criando situações de representação que rompessem o cotidiano do pedestre comum.
Poderia se dizer que nossa busca se dirigiu ao teatro de rua, no entanto, a particularidade desta pesquisa se deveu ao fato de que Escena Subterránea se dedicou a invadir os espaços do metrô de Buenos Aires tratando de retirar da própria estrutura arquitetônica dos subterrâneos seu elemento de trabalho. Imediatamente as situações de potenciais de risco, próprias de um lugar de concentração de pessoas no subterrâneo de uma metrópole (roubos, acidentes, etc.), sugeriram o caminho a seguir no que se refere à investigação das técnicas a serem aplicadas ao espetáculo. O objetivo foi construir uma performance que tomasse do próprio âmbito espacial os elementos mais mobilizadores possíveis para, a partir deles, criar as sequências dramáticas que comprometessem o público no seu desenrolar. Assim surgiram as cenas de corridas intensas pelos corredores e plataformas, os diálogos e contatos corporais no interior dos trens e finalmente, as lutas de espadas e tiros. A performance "La persecusión" se construiu sobre a base de que o risco real dos atores, que até corriam e lutavam em pernas-de-pau, possibilitaria o estabelecimento de um estado de prontidão no público.
O trabalho do Grupo Teatral Experiência Subterrânea partiu da proposta desenvolvida anteriormente em Buenos Aires. Foi com base na experimentação do risco no metrô, e também nos ônibus urbanos portenhos, que se buscou levar este risco à uma grandeza maior e assim criar uma nova classe de vínculo com o público acidental que constitui o pedestre usuário da rua transformado em espectador. Por isso, Experiência Subterrânea se propos a alcançar a silhueta de prédios para sua encenação de "A Destruição de Numância" (Miguel de Cervantes) com a utilização de técnicas de alpinismo. O uso destas técnicas neste espetáculo encontra precedente nas investigações do grupo argentino La Organización Negra no começo dos anos 90, mas, a diferença fundamental reside em que no caso de Experiênica Subterrânea, as técnicas de deslocamento em altura buscavam uma relação o mais estreita possível com o texto dramático ao mesmo tempo que se aproximavam dos elementos de risco físico e, consequentemente da criação do estado de prontidão por parte do espectador.
No processo de abordagem e apropriação teatral da silhueta urbana, é inevitável a transformação do uso do espaço da cidade, e isso possibilita que surjam novos vínculos entre espetáculo e público. Estes vínculos se edificam através da resignificação do uso do espaço urbano, da transformação da condição dos transeuntes e da comunhão no ato de compartilhar a situação de risco e consequente o estado de prontidão.
Tomando como base estes elementos surgiu a necessidade de realizar uma reflexão acerca da função do risco físico no processo de formação dos atores, já que havíamos experimentado de forma viva o papel do risco físico na construção de espetáculos de apropriação da silhueta urbana.


Risco e a condição natural do ator

O ator é um indivíduo que vive em um universo de riscos desejados. Desde dos referentes da nossa realidade cotidiana vemos o risco eminente quando se opta pelo trabalho da atuação, pois, apesar de estarmos na era da simulação por excelência, a profissão de ator, via de regra, não recebe gratificação que permita uma vida de abundância econômica. Só recebem altas remunerações aqueles que simulam ser atores/atrizes submergidos nos desígnios da estrutura econômica do chamado "star sistem". Este o risco social adquire necessariamente maiores dimensões quando o ator entende sua arte como uma prática social fundamentada em uma função transformadora. Neste caso é evidente a possibilidade de marginalização e solidão dos teatristas.
O ator é um artista que se prepara para enfrentar, permanentemente, condições de perigo. Por definição a arte de atuar é uma prática na qual o artista se expõe e se lança no território do desconhecido. Atravessa fronteiras expondo seu corpo e sua mente a condições adversas e, paradoxalmente, é ali que ele encontra o prazer. Essa é uma constatação da prática milenária da arte teatral: ser exposto, expondo as pulsões coletivas. Se pensamos esta exposição como algo que vai muito além da exposição psicológica e do confronto com o potencial outro (personas-personagens) com os quais se enfrenta o ator, poderemos ver outras zonas de risco que fazem parte do universo do ator.

A silhueta urbana, o risco e o espetáculo

A abordagem teatral da silhueta urbana supõe uma série de dificuldades para a construção do espetáculo. O espaço adverso da urbe exige que a representação conviva com a interferência permanente de toda classe de ruídos, e especialmente, com a interferência da própria vida social que flui incessantemente pelas ruas enquanto o teatro tenta conquistar o seu espaço.
A presença dessa vida que flui, e que às vezes aparece como um obstáculo a ser vencido para se alcançar o maior nível de comunicabilidade possível com o fenômeno teatral, pode ser considerada a própria essência da experiência cênica quando se busca redefinir a silhueta urbana e os usos do espaço público. No metrô, na rua, no ônibus, no trem, o teatro deverá construir alternativas para ganhar um significado que extrapole o caráter de simples espetáculo que se propõe como fato complementário na diversidade de ofertas da qual o transeunte dispõe. Nestas circunstâncias o fazer teatral está obrigado a procurar um ponto de conexão com o público que opere no sentido de criar uma disponibilidade que propicie que esta audiência dedique tempo e atenção ao acontecimento teatral. Se o público não está convencido a entregar seu corpo/mente ao acontecimento teatral a tentativa de criar uma cerimonia fracassará.
As qualidades narrativas de um texto espetacular lançado no espaço urbano, não são suficientes para criar um lugar de relações profundas entre "fazedores" e "observadores", é necessário buscar a criação de uma esfera de sensações. Foi neste sentido que investigamos as propostas de risco físico em cena, pois, a utilização desta orientação para o trabalho nos colocava frente a possibilidade de buscar este vínculo forte o suficiente para criar uma cerimonia teatral que catalizassee a atenção dos espectadores e pudesse abrir espaços para um intercâmbio de experiências fortes entre a cena e a audiência.
A iminência do desastre, do infortúnio físico, o corpo lançado à aventura do perigo permite uma transmissão de sensações que são organizadas a partir da percepção dos possíveis efeitos dos gestos e dos deslocamentos dos atores quando este se projetam no espaço aéreo evidenciando a possibilidade da queda. O ator que corre em pernas-de-pau pelas espaços apertados do metrô ou realiza arriscadas acrobacias no interior de um ônibus está propondo ao público um estado físico especial no momento de vivenciar a representação. Da mesma forma que o ator experimenta sensações físicas particulares durante a sua performance de risco o espectador não poderá evitar que seu organismo, estimulado pela percepção da situação de risco tenha reações concretas. Este tipo de acontecimento cria com o observador um fio de contato que se fortalece pela própria conexão e pela convenção silenciosa de que não ocorrerá o efetivo desastre, como todos supõe. É importante dizer, que talvez, em algum lugar escondido, tenha~se um tímido desejo de que este desastre se materialize. Não será este segredo a fonte mesma das sensações que promovem a conexão com a cena?
Diferentemente das práticas circenses, onde a iminência do acidente opera como o referencial que permite avaliar (e aplaudir) a qualidade da destreza do performer, no fenômeno teatral o risco físico se articula com a edificação das estrutura ficcional. O risco não é um elemento separado, particular, exclusivo, senão um componente que constroe as possibilidades da ficção.

O risco fisico e a formação do ator

Substanciada na percepção de que é condição imanente do ser ator o correr riscos, e na experiência anteriormente mencionada, surgiu a proposta de iniciar um processo de formação de atores a partir do enfrentamento destes com as situações de risco físico.
Esta é uma forma que visa conseguir que os iniciantes construam suas experiências a partir da reflexão mais profunda possível sobre a condição do ator. Quando se coloca um ator pendurado numa corda a quinze ou vinte metros do chão e se pede a este ator que mantenha a qualidade do texto que está representando se alcança uma mutiplicidade de tarefas a serem desenvolvidas por parte do ator. Ao mesmo tempo que o este estará agindo cuidadosamente para evitar erros que conduzam a uma queda fatal, também terá que se manter concentrado na representação do papel. O ator não poderá em nenhuma hipotese deixar-se levar pela tentação de uma forma de representar que seja articulada a partir de estímulos predominantemente emocionais. A técnica de alpinismo, meticulosa e delicada, deverá por um limite nos arroubos voluntaristas dos atores, seu contato com o inevitável medo às alturas o colocará frente à possibilidade de romper barreiras e avançar no domínio de um discurso artístico.
O ator submetido ao exercício do risco estará obrigado a elaborar caminhos diferenciados dos tradicionais na construção da ficção e das personagens. A experimentação com as técnicas do risco supõe uma série de situações vivenciais, desde a experiência individual como a grupal, que obrigam que os atores tenham como principal preocupação a percepção do funcionamento do binômio corpo-mente em ação. A alteração do estado físico cotidiano de uma forma radical, obrigatoriamente, fará com que o funcionamento do corpo seja reconstruido no sentido de que os apoios, a voz, a gestualidade terão que encontrar novas modulações. O equilibrio entre a performance dramática e a experimentação do risco conformará o lugar essencial do trabalho do ator.
O contato com técnicas de risco põe o ator enfrentado diretamente com o universo dos seus medos a partir de experiências físicas. Superar estes medos supõe um trabalho de auto conhecimento e de reelaboração de suas atitudes frente ao fazer teatral e à vida mesma. O processo de enfrentamento do risco e a consequente busca do domínio das técnicas para diminuição do risco físico são componentes essenciais do processo de treinamento. O ator que está imerso nesta classe de experiência se vê obrigado a realizar uma série de aprendizagens que incluem o descobrimento de um ponto de equilibrio entre os diversos componentes presentes no processo. É o ator que deverá estabelecer uma relação harmoniosa entre o jogo com o risco e potencial expressivo que emerja do processo de aprendizagem. Também será necessário aprofundar a experiência coletiva que será própria da manipulação dos exercícios de risco. As práticas carregadas de relações interdependentes, baseadas na confiança recíproca, permitirão aos atores verificarem até que ponto estão, ou não, preparados para encarar uma prática teatral que avance em direção a constituir-se de fato em um processo de criação grupal sólido.
Será desde este lugar que o ator se verá comprometido com a tarefa de se expor sob condições que demandam uma multiplicação dos focos de atenção, e pelo menos uma duplicação na ação. Isto é, o ator deverá construir seu trabalho ficcional no mesmo momento em que estará obrigado a cuidar dos procedimentos que administram as quotas de risco propostas para as ações cênicas. A duplicidade, própria do trabalho do ator, ganha neste caso características particulares, pois, não se trata apenas da dupla existência real/ficcional, senão de uma radicalização da realidade que gera uma qualidade ficcional particualr.
O que se busca com o risco é uma espécie de estiramento da realidade, transformano-a em uma supra realidade pois o "fazedor" estará deslocado do seu campo real. Assim, chegaríamos a ter tres planos sobrepostos: o cotidiano do ator, o cotidano submetido ao risco e a geração do ficcional.

Conclusão

O treinamento do ator a partir de condições de risco se relaciona com o objetivo de situar o ator frente aos seus limites para que este possa realizar uma experiência profunda no momento em que escolhe o teatro como campo da criação artística. O direcionamento de um trabalho de pesquisa pessoal e introspectivo que conduz ao ator a um mergulho no seu interior se mostra cada vez mais incapaz no sentido de permitir o desvendar das possibilidades do ator. É exercendo sua função de representar que o ator descobre os seus caminhos possíveis. Neste sentido o trabalho com o risco físico busca incorporar nesta experiência dificuldades que conduzem a uma reflexão global do fazer atoral. Em condições de risco os atores não podem deixar de experimentar um encontro com seus medos. Quando me refiro a medo estou pensando em todas as dimensões do medo. Se o ato de representar é necessariamente se expor (frente a si mesmo e ao público), as práticas que preparam a representação deveriam sondar as entranhas desta relação.
A proposição de trabalho com o risco físico nos põe frente ao problema das repercussões deste trbalho nas trajetórias individuais dos atores. Não se pode esquecer que os questionamentos que se abrem a partir do ato de enfrentamento do risco supõe a possibilidade de uma série indefinida de consequências de ordem psicológica para os participantes da experiência. Não se pode acreditar que enfrentar o risco funcione, apenas, como um recurso técnico para alcançar resultados cênicos. Estas práticas são parte integrante de um processo criativo que visa estabelecer núcleos fortemente estruturados para o trabalho de investigação teatral. Esta investigação significa buscar uma aprendizagem ao nível tanto da realização espetcular como do processo de construção de uma estrutura solidária articulada.


Referências Bibliograficas

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Dr. André Luiz Antunes Netto Carreira
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)


Curriculo Resumido

Doutor em Teatro pela Universidad de Buenos Aires com tese sobre Teatro de Rua. Fundador da companhia teatral Escena Subterránea de Buenos Aires que se dedica a realizar espetáculos em metrôs e trens. Professor do Departamento de Artes Cênicas e Coordenador do Programa de Mestrado em Educação e Cultura da Universidade do Estado de Santa Catarina. Atualmente dirige o Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea com o qual pesquisa técnicas de risco físico na preparação dos atores e realiza espetáculos a partir da apropriação da silhueta urbana.

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