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O RISCO FÍSICO NA PERFORMANCE TEATRAL

André Carreira
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)


Suponhamos que a idéia de performance, no que se refere ao trabalho do ator, signifique a produção de sentidos através de procedimentos técnicos que demandam do performer além de uma condição física específica um desejo de exposição social e psicológico. Parto deste conceito de performance, como uma prática teatral que implica uma experiência de vida cada vez que é desatado o processo de representação mesmo. Representação entendida aqui não como uma simples apresentação de um texto espetacular frente a um público determinado, mas, sim como uma prática coletiva de construção de uma cerimônia cênica que supõe uma ritualidad específica e cujo objetivo maior é a criação de um estado vivencial por intermédio das técnicas e linguagens teatrais.
Podemos considerar que toda e qualquer prática performática que envolva atores suporá o estabelecimento de um compromisso de entrega destes as demandas próprias do evento social que será sempre a representação. Pois, sem esta entrega a representação tenderá a constituir-se em um mero exercício de espelho, no qual um grupo de artistas buscaria mostrar aos espectadores uma reflexão a respeito da vida, uma espécie de demonstração da vida.
No entanto, a performance teatral é por excelência uma cerimonia social. Como afirma o estudioso francês Jean Duvignaud, esta é uma cerimonia social diferida mais que uma re-apresentação da vida social ela se articula enquanto uma prática social com condicionamentos particulares que a caracterizam como um acontecimento vivencial. Este se dá de forma combinada com a vida social, sendo uma construção social que fala da sociedade ao mesmo tempo que só pode existir como evento de socialização (Duvignaud, 1979). Como cerimonia o teatro comprime os acontecimentos e os tempos sociais sendo ao mesmo tempo uma prática social com regras particulares que não necessariamente se referem aos temas da dramaturgia. Jean Duvignaud reconhece uma distinção entre a cerimonia teatral e a cerimonia social que segundo ele "não radica na oposição superficial entre existência imaginária e existência real, senão pelo fato de que no teatro a ação ‘se da a ver’ na forma de espetáculo" (Duvignaud, 1979; 25), assim o sentido da exposição, ainda que sempre articulado como prática mimética, prevalece como ato social. É exatamente esta diferença que importa na compreensão dos fenômenos do ator, será este o agente fundamental desta decisão de "se dar a ver" que delimita a fronteira da teatralidade.
O ator é um indivíduo que escolhe operar como "sacerdote" desta cerimonia. Utilizo aqui o termo sacerdote sem querer atribuir ao teatro uma característica para-religiosa, quase mística. Apenas reconheço no papel do ator a função de veículo dos acontecimentos cênicos, aquele que é responsável por fazer concreto o desejo de vinculação entre os indivíduos comprometidos no espetáculo, na cerimonia. Este papel de portador dos elementos de conexão, esta tarefa eminentemente provocadora, já indica o terreno do risco. Aquele que provoca se faz responsável dos desdobramentos dos seus atos, e por isso mesmo corre com os riscos de ter que responder às demandas potenciais do público.
Em uma comunicação apresentada no III Colóquio Internacional de Etnocenologia realizado em Salvador em 1996, eu afirmava que "Por definição, a arte de atuar é uma prática na qual o artista se expõe e se lança no território do desconhecido. Atravessa fronteiras expondo seu corpo e sua mente a condições adversas e, paradoxalmente, é ali que ele encontra o prazer. Essa é uma constatação da prática milenária da arte teatral: ser exposto, expondo as pulsões coletivas. O ator é um indivíduo que vive em um universo de riscos desejados. Desde os referentes da nossa realidade cotidiana vemos o risco eminente quando se opta pelo trabalho da atuação, pois, apesar de estarmos na era da simulação por excelência, a profissão de ator, via de regra, não recebe gratificação que permita uma vida de abundância econômica. Só recebem altas remunerações aqueles que simulam ser atores/atrizes submergidos nos desígnios da estrutura econômica do chamado star sistem. Este o risco social adquire necessariamente maiores dimensões quando o ator entende sua arte como uma prática social fundamentada em uma função transformadora" (Carreira, 1997).
Não há novidade em identificar o risco existente no trabalho do ator, mas, a consciência de que a performance se constitui sobre uma base de risco, que é particularmente importante para a qualidade da mesma, não é um assunto muito discutido no meio teatral. Poderíamos dizer que não é um tema tornado consciente na prática do ator, por isso mesmo se faz interessante tentar uma reflexão sobre a importancia do risco na constituição da performance. Ao contrário do que muitos diretores opinam a consciência do risco no exercício da atuação é uma premissa fundamental para o domínio das variantes às quais estará submetido o ator.
Propor refletir sobre a idéia de risco no trabalho do ator significa supor uma atitude de discussão do próprio trabalho do ator. É fundamental procurar um distanciamento daquelas atitudes que encaram a formação do ator como um ato de simples aprendizagem técnica. Esta aprendizagem deve ser transformada, ou melhor consolidada como uma experiência vivencial cujo eixo será o enfrentamento com seus limites tanto mentais como físicos.
Os críticos poderão argumentar dos riscos implícitos nesta proposição, pois, supostamente o diretor que encaminha seus atores ao enfrentamento com o risco estará detonando experiências que ele mesmo poderá não estar apto para operar como elemento de contenção. Assim, o exercício tenderia a se transformar em um enorme desgaste de energia por parte dos atores, com uma grande potencialidade de descontrole, enquanto o diretor ficaria em uma posição de observador privilegiado da "tragédia" alheia, sempre pronto para utilizar os resultados em suas encenações.
Certamente, estes acontecimentos estão na esfera do possível. Mas, quando proponho o reconhecimento do risco e a pesquisa em torno dele, suponho que esta tarefa será uma experiência compartilhada por toda a equipe comprometida nela. Este compromisso deverá ser muito mais profundo que um mero acordo verbal, deverá ser um projeto discutido e elaborado coletivamente. Se faz aqui necessário diferenciar esta proposição de enfoque coletivo de qualquer idéia que se aproxime aos procedimentos das terapias grupais. Um grupo de trabalho teatral, ainda que explore os terrenos da subjetividade dos seus indivíduos deverá ter claro que as tarefas terapêuticas apresentam características que distam muito das buscas estéticas e técnicas que cortam transversalmente toda a experiência subjetiva relacionada às pesquisas teatrais.
O diretor Augusto Boal, no seu tratado de "teatro-terapia" chamado O Arco-Iris do Desejo, expressa uma idéia refente ao perigo do teatro, que está sintetizada da seguinte forma: "Ser ator é perigoso; por que? Porque a catarse que assim se busca não é inevitável. Mesmo tendo todas as seguranças da profissão, mesmo tendo todas as projeções rituais teatrais, mesmo que se estabeleçam teorias sobre o que é a ficção e o que é a realidade, mesmo assim esses personagens despertados podem se recusar a voltar a dormir, esses leões podem se recusar a voltar para o zoológico das nossas almas e às suas jaulas" (Boal, 1996; 52). O risco do teatro não está em deixar que "demônios" tomem conta dos atores tal como obsseções de espíritos descontrolados: Não se pode crer que a experimentação cênica com diferentes formas de caráteres seja um caminho para a loucura e o descontrole. Se algum caso é conhecido neste sentido será nada mais que uma excessão que nos falará de alguma psicopatologia que eclodiu em determinado momento, mas, que não tem nada a ver com nossa prática de recriar personagens. Porém, o risco é um componente transformador sim, mas transformador porque sua experimentação propicia descobertas que estão relacionadas com a construção do sujeito que é o ator e não com a provocação de instintos primigênicos que podem escapar de nosso contrôle.
O grande mestre francês Jean-Louis Barrault afirmou que o teatro "é, entre todas as artes, a mais viva, não a mais pura, senão a mais viva. Portanto, é mais mesclada. Não se pode praticá-la tampando-se o nariz. É uma fusão humana onde há de tudo, do melhor e do pior (...). [Está] baseado essencialmente na recriação do Ato no sentido mais profundo, o ato de vida.."(1) Consequente com esta visão do teatro Barrault afirma que "o teatro é uma arte do presente, uma arte carnal, magnética por excelência, [que] se apoia essencialmente na sensação e não na idéia"(2). O pensamento de Barrault permite uma leitura da complexidade do fazer teatral, a partir da compreensão de um aspecto fundamental: a fusão entre o pensar e as pulsões que são a marca determinante da vida no espaço cênico. É nesta zona de intersecção, de mescla que fica mais claro como o risco, por tratar com os impulsos e experiências que não estão dominados pelo racionalismo, cria condições para uma experimentação em um terreno mais vital da constituição do ator.
O teatro que propunha Antonin Artaud nos seus delírios premonitórios era um teatro que como a peste se disseminasse, que gerasse o caos, ou melhor que criasse como a peste um "transbordamento de vícios, uma espécie de exorcismo total que assola a alma e a espiaça (...) que se apodera das imagens adormecidas, da desordem latente e as impulsiona de repente até o ponto dos gestos mais extremos" (Artaud, 1984: 39), este teatro seria necessariamente um teatro fundado no risco. O ator que busque essa fronteira que almejava Artaud estará certamente caminhando no sentido de tomar, com o seu ato criador, o compromisso de gerar rupturas pessoais e também sociais. Artaud afirmava que o "teatro essencial é como a peste, não por que é contagioso, mas sim porque, como a peste, é a revelação, a ascenção para o primeiro plano, a exteriorização de um fundo de crueldade latente através do qual se localizam num indivíduo ou num povo todas as possbilidades perversas do espírito" (Artaud, 1987; 43). A proposta do teatro artaudiano se apresentava fundamentalmente como um teatro que faria da arte de representar uma cerimonia no sentido mais estrito, uma cerimonia na qual seus participantes buscam uma comunhão construida, não apenas por intermédio do simbólico, mas, fundamentalmente pela via de um contato que se daria através dos elementos vitais, como diria Artaud através da "liberdade negra do sexo" que se conquiste na cena. Efetivamente, o pensamento artaudiano nos faz crer na inevitabilidade de uma alta quota de enfretamento com os riscos, que supõe tal busca do ato essencial.
A partir destas idéias é interesante buscar uma relação com o pensamento de Jerzy Grotowski, que com seu Teatro Laboratório fez a experiência de levar o ator ao ato de desvendar os elementos fundacionais do seu ofício na relação com a construção do ato teatral. Para Grotowski a classe de compromisso exigida do ator para que este pudesse alcançar a qualidade necessária da representação significava uma radical atitude de ruptura, que engendraria não somente uma nova postura social, mas, fundamentalmente, um grande risco que seria o de re-descobrir a essência do teatro, como processo para definir sua própria essência. A idéia grotowskiana da "arte como instrumento", que supera o ato representacional, constitui uma passo a mais na direção da pesquisa acerca do ponto de contato entre o ser e a entidade do ator, Grotowiski chega ao arriscado limite de propor algo assim como o fim mesmo do teatro.
As proposições de Antonin Artaud e o trabalho de Jerzy Grotowski, funcionaram, nos renovadores anos 60/70, como base de sustentação das práticas de diversos grupos que tinham suas experimentações cênicas emparentadas e/ou sustentadas diretamente por atitudes ideológicas de ruptura com o modelo cultural dominante. Estes grupos se caracterizaram por adotar posturas artísticas dispostas ao enfrentamento com as normas do establesment. De fato, isto implicava assumir os riscos decorrentes destes compromissos, que naquele momento histórico também podia significar assumir riscos físicos. O caso do grupo norte americano Living Theatre é exemplar. Coerentes com suas posições combativas os atores deste grupo, encabeçados por Judith Malina e Julian Beck, não se recusaram a enfrentar a repressão policial e insistiram em realizar suas atividades no território brasileiro em plena ditadura militar (3). Vários grupos brasileiros também mantiveram com suas práticas teatrais uma atitude de enfrentamento aos riscos que implicavam aquele momento histórico, como foi o caso dos grupos Arena e Oficina cujas atividades implicaram em prisão e exílio tanto para José Celso Martinez Corrêa como para Augusto Boal.
A classe de risco a que estavam submetidos estes grupos era bastante objetiva, por tratar-se de riscos referentes ao contexto político. Mas, é interessante compreendê-los como componente da "existência arriscada" inerente ao fenômeno teatral enquanto prática questionadora das "verdades" humanas.
Se buscamos compreender o risco no interior da experimentação técnico-expressiva como ponto de conexão das circunstâncias gerais do fazer teatral, como foi explicitado anteriormente, com as práticas específicas de treinamento, veremos uma série de possibilidades que dirão respeito à construção do discurso teatral.
O ator aprende corporalmente, isto é, até a experiência mental dos atores só flui se há vivência corporal que teste e a consolide como aprendizagem. Por isso é válido afirmar que o ator é um dançarino, pois, seu desempenho e pesquisa se dão, fundamentalmente, através da experimentação corporal, da performance física que se articula com a construção de estruturas emocionais, que por sua vez operam como motor das suas ações cênicas. Desde este ponto de vista é possível afirmar que o trabalho com os elementos de risco constitui um estímulo vital na busca de possibilidades de investigação do potencial, tanto do ator frente às exigências da performance como dos processos de criação de personagens.
Cabe estudar como o risco interferiria na transformação, primeiro da atitude do ator frente ao fazer teatral, e posteriormente na rearticulação dos vínculos existentes entre o espetáculo e o público.


O risco físico no processo de preparação do ator

Refletir sobre o ator nos propõe a seguinte questão: quais são as expectativas que temos em relação ao ator na contemporaneidade? Seria um ator polivalente, como nos faz crer as exigências dos meios de comunicação, ou um ator fortemente vinculado com um projeto grupal, como propõe certos grupos teatrais? Efetivamente, o paradigma de ator que estamos buscando neste final de milênio está, predominantemente, marcado pelas condições do teatro na atualidade, e é necessário reafirmar esta condição particularmente ambígua do teatro na atualidade. Se por um lado se percebe a simples vista que no panorama dos mass media o fenômeno teatral não passa de uma manifestação marginal sem possibilidades de alcançar um lugar de arte necessária ante as - supostamente infinitas possibilidades dos meios massivos - , ao mesmo tempo podemos perceber o teatro como uma persistente forma artística que reforça sua característica de arte local, enquanto manifestação cultural que mantém vínculos vitais com seu lugar de gênese. Certamente, seria possível afirmar que existem formas teatrais que respondem a modelos transnacionais que exercem a força de modelos dominantes, isto é inquestionável, mas, a existência deste fenômeno não esconde o fato de que a prática teatral majoritária se dá no campo dos modelos marginais(4) e em circunstâncias absolutamente regionais. A complexidade de elementos que estão presentes quando tratamos de refletir sobre o ator no contexto cultural contemporâneo nos obriga a trabalhar com uma premissa que, queiramos ou não, partirá da idéia de fragmentação. Neste caso, da fragmentação dos paradigmas do ator que anteriormente funcionaram como referência para a delimitação de procedimentos e métodos de formação atoral. Por isso, a busca de um elemento que tenha a característica de partícula fundamental que possibilite abordar, senão a essência do ator, pelo menos o ponto disparador da geração deste, será um instrumento extremamente útil para aqueles que pretendem refletir sobre o ato de atuar.
Não é estranho à teoria teatral a preocupação dos diretores em buscar que o ator se disponha, de uma maneira particular, para enfrentar o trabalho cênico. Mas, as propostas de reposicionamento, que já formam descritas de formas muito variadas em diversos manuais de atuação, sempre supõe o risco para o praticante (5). Estas propostas se relacionam com os procedimentos necessários para que um indivíduo passe a atuar, assumindo o papel de atuante.
O diretor Antunes Filho, descrevendo em 1991 seu trabalho no processo de formação dos atores no Centro de Pesquisas Teatrais (CPT) em São Paulo, afirmava que no início do trabalho era necessário "quebrar as carapaças dos atores (...) a primeira coisa a fazer era desequilibrar o ator" (Carreira, 1992; 62). A agressividade dos procedimentos de Antunes Filho se materializava na violência utilizada no processo de formação do ator. Estas situações produzidas nas sessões de treinamento e ensaio no CPT, visavam encontrar uma nova postura dos atores frente ao ato de representar. Esta agressividade, a violência podem (e são) criticadas duramente. No entanto, não vem ao caso aqui discutir a efetividade ou a correção das idéias de um diretor em particular, mas, sim reconhecer que esta transposição do estado prévio à atuação para o papel do ator, passa pela experimentação de risco. No ofício do ator, à diferença de outras profissões, o risco está presente com pressuposto básico, pois, atuar é expor-se, submeter-se ao olho alheio, à crítica.
Neste sentido é interessante tomar em consideração a abordagem que faz Eugenio Barba, no seu livro A Arte Secreta do Ator, do papel das lutas marciais na conformação de um saber corporal para o ator e as influências destas técnicas na criação e um estado "pré-expressivo". Segundo o pensamento da Antropologia Teatral a pré-expressividade seria "um nível básico de organização comum a todos os atores, (...) este conceito não leva em consideração as intenções, sentimentos, identificação ou não-identificação dos atores com a personagem, emoções" (Barba/Savarese, 1995; 187). Este nível de tensão que sem querer expressar é capaz de suscitar emoções está diretamente relacionado com as possibildiades do ator tornar sua presença atraente de forma imediata para o espectador. Para Barba, as artes marciais propiciam a ruptura com a automatização do corpo e por isso criam uma nova qualidade de energia para o corpo. A postura básica de todas as lutas marciais orientais propõe um "corpo decidido pronto para o impulso e para a ação" (Barba/Savarese, 1995). Poderíamos dizer que os elementos codificados implícitos nas artes marciais estão combinados com os elementos próprios de todo combate, ou seja o inusitado, a ação inesperada do oponente, portanto o risco do golpe e do impacto. Essa combinação de elementos implica na existência de um ritmo alternado de ações que articula momentos de contenção e explosão que dão ao ator, que emprega estas técnicas no seu treinamento, um jogo direto com um risco controlado.
Quando no treinamento o ator experimenta o risco físico, está testando suas potencialidades pessoais. Está, de forma contundente, vivenciando a descoberta de alguns dos seus limites. Como o treinamento tem um grande componente coletivo, o ator também está exercitando jogos de solidariedade. Em primeiro lugar porque, via-de-regra, necessita dos seus companheiros para as práticas físicas, desenvolvendo assim relações de confiança e entrega com o descobrimento do outro; em segundo lugar porque esta experiência permite compartilhar com os companheiros as vivências decorrentes do enfrentamento com risco. Assim, os vínculos de trabalho são provados constantemente, aumentando as possibilidades de que não existam relações construidas sobre a base da máscara da falsidade. O risco físico possibilita um desvendar dos indivíduos durante as tarefas, pois, a segurança de cada um depende em grande medida do cuidado do outro.
Em outro sentido, o risco impõe o aprendizado de uma estrita disciplina de trabalho. Quando se opera a grandes alturas, por exemplo, como é o caso do uso de cordas aéreas ou trapézio, ou se utiliza armas como espadas, o ator deverá, de forma imperativa, cuidar de seguir estritamente todas as normas de segurança e estar atento em ter o maior cuidado possível com os dispositivos técnicos. O mesmo grau de atenção não existe quando os únicos elementos em questão são a performance da voz e do corpo na construção do personagem ao nivel de um palco seguro. Desta forma a disciplina exigida para a manipulacão de técnicas de risco deve ser transladada, sempre que possível, ao conjunto do trabalho atoral. As práticas que envolvem o risco são bastante disciplinadoras, pelo que se pode supor que uma experiência deste tipo significa uma aprendizagem que se extende a toda prática do grupo.


O risco físico como disparador do vínculo

Se podemos ver como o risco físico opera no processo de formação do ator também é interessante averiguar como ele funciona no ato mesmo do espetáculo teatral como elemento que opera criando canais de vinculação do binômio espetáculo-público. Muitos autores observam que atualmente, o espectador não encontra no espetáculo teatral substâncias que o estimule (intelectual ou fisicamente), e por isso se distancia das formas mais tradicionais do teatro, não se distanciando, porém, da teatralidade.
Este distanciamento das modalidades teatrais que se apresentam na maioria das vezes carregadas de um eterno repetir formal deve ser compreendido principalmente como uma ruptura com modelos estéticos que perderam capacidade mobilizadora no contexto da multifacética cultura contemporânea. Muitas vozes se alçam para dizer que na era do vídeoclip e das mega-produções cinematográficas, o teatro tradicional não oferece atrativos poderosos para as audiências. A esta verdade quase óbvia, é necessário agregar que o problema não passa apenas pela questão da renovação dos códigos estéticos, mas, sim pela transformação dos instrumentos de vinculação que serão responsáveis pela qualidade e intensidade da cerimonia social que é o espetáculo teatral.
Apesar disso, não podemos pensar que somente um teatro, ou evento teatral como os espetáculos propostos pela Fura dels Vals (Espanha) ou De la Guardia (Argentina), que estão fundados na utilização de uma grande estrutura técnica que possibilita performances baseadas em elementos quase acrobáticos associados à violência, poderão conquistar as audiências. Seria de um reducionismo absoluto afirmar que não há espaço para a diversidade nos palcos (ou nas ruas), mas, nos vemos frente a um paradoxo: se por um lado sentimos um evidente esgotamento da arte teatral no que se refere à repercussão junto ao público, percebemos a singularidade que ainda representa o teatro dentro do atual contexto fragmentador dos referentes culturais.
Buscar o risco na linguagem teatral permite experimentar formas de recriação dos vínculos com os espectadores. Desde este ponto de vista surge a possibilidade de que o risco seja analisado como instrumento auxiliar (não necessariamante secundário) no estabelecimento de cerimonias teatrais. Se o simples narrar não é uma ação poderosa o suficiente para suscitar rupturas no cotidiano daqueles potenciais espectadores do teatro, os teatristas estarão obrigados a experimentar novos elementos. Certamente, vemos hoje em dia variadas formas do espetáculo teatral, muitas das quais se aproximam deliberadamente do mundo da imagem cinematográfica, que lutam pela reconquista do público, quando o objetivo primordial seria a reconquista dos sentidos do ato teatral.
Neste sentido, a experimentacão com o riso aponta à recriação dos laços com o público não somente pelo inusitado da perfomance do ator que se arrisca, mas, pela possibilidade do descubrimento da energia dispensada pelo ator no processo de preparação e realização do ato cênico. O reconhecimento do compromisso que demanda o estar em cena, e a efetiva vivência que proporciona o reconhecer o risco e sentir as emoções decorrentes no momento mesmo da performance conformam instantes particulares que possibilitam vínculos que são mais profundos que o simples ato de presenciar um espetáculo. Neste caso podemos fazer um paralelo com o show circense ao qual se reconhece um potencial "mágico", que está dado antes de mais nada pela capacidade do artista do circo de superar os limites do físico.
Insisto, não se trata apenas de propor espetáculos arriscados, mas, essencialmente de se construir práticas teatrais que estejam dispostas a romper com a rotina do espetáculo tradicional a partir do uso do risco como forma de redescobrir uma nova teatralidade suficientemente forte para resignificar o teatro em nossa sociedade.

Referência Bibliográfica
Artaud, Antonin. 1987. O Teatro e seu Duplo. Ed. Max Limonard. São Paulo.
Barrault, Jean-Louis. 1992. Que es elteatro para mi. In El Teatro y su Crisis Actual. Caracas. Monte Ávila Editores
Carreira, André. 1997. "A Noção de Risco Físico na Formação do Ator". III Colóquio Internacional de Etnocenologia. Salvador. UFBa.
1992. El Actor es un Ilusionista. In Revista Espacios Buenos Aires. Ano 6, nº. 12.
Duvignaud, Jean. 1980. Sociologia del Teatro (Ensayo sobre las sombras colectivas). Fondo de Cultura Económica.1970. Espectáculo y Sociedad. Caracas. Ed. Tiempo Nuevo.
Freud, Sigmund. 1987. Lo Siniestro. Buenos Aires. Ed. Homo Sapiens.
Grotowski, Jerzy. 1992. Em Busca de Um Teatro Pobre. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira.
Javier, Francisco y Ardissone, Diana. 1986.. Los lenguajes del espectáculo teatral. Buenos Aires. Facultad de Filosofía y Letras - UBA.
Mason, Bim. 1992 Street theatre and other outdoor perfomance. London. Routledge.
Tytell, John. 1995. The Living Theatre. Art, Exile, and Outrage. New York. Grove Press

Dados biográficos

O Prof. Dr. André Carreira é Licenciado em Educaçao Artística pela UnB em 1984, e Doutorado em Teatro pela Universidad de Buenos Aires no Instituto de Artes del Espectáculo em 1994. Desde 1985 até 1995 viveu em Buenos Aires onde dirigiu a Oficina de Teatro do Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil e fundou a Companhia Teatral Escena Subterránea dedicada a fazer teatro em metrôs e ônibus. Vive atualmente em Florianópolis onde ensina no Departamento de Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina, edita a Revista Urdimento especializada em pesquisas teatrais, e dirige o Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea que trabalha com técnicas de risco físico.

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1 Barrault, Jean-Louis. "Que es elteatro para mi". In El Teatro y su Crisis Actual. 1992. Caracas. Monte Ávila Editores. P 79.

2 Idem nota anterior. P 81.

3 O Living Theatre esteve no Brasil no ano de 1970, onde contou com o apoio do Grupo Oficina. No final deste mesmo todo o elenco foi preso pela Policia Federal acusados de consumo de drogas, posteriormente o grupo foi expulso do pais. Por ocasião desta visita Julian Beck escreveu: "Eu estou com o povo que vende seu trabalho, seu corpo, sua vida para escapar da fome" (Apud Tytell,1995; 278)

4 O conceito de modelo teatral marginal a que me refiro diz respeito à conceituaçao proposta por Juan Villegas. Ver "Discurso Teatral Hegemônico

5 Podemos observar que muitos mestres de atores dedicam especial atenção ao primeiro contato do estudante com as condições da atuação. Este cuidado se deve ao reconhecimento dos medos próprios do iniciante e dos perigos inerentes ao fazer do ator.

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