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O RISCO FÍSICO NA PERFORMANCE TEATRAL
André Carreira
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Suponhamos que a idéia de performance, no que se refere ao trabalho
do ator, signifique a produção de sentidos através
de procedimentos técnicos que demandam do performer além
de uma condição física específica um desejo
de exposição social e psicológico. Parto deste conceito
de performance, como uma prática teatral que implica uma experiência
de vida cada vez que é desatado o processo de representação
mesmo. Representação entendida aqui não como uma
simples apresentação de um texto espetacular frente a um
público determinado, mas, sim como uma prática coletiva
de construção de uma cerimônia cênica que supõe
uma ritualidad específica e cujo objetivo maior é a criação
de um estado vivencial por intermédio das técnicas e linguagens
teatrais.
Podemos considerar que toda e qualquer prática performática
que envolva atores suporá o estabelecimento de um compromisso de
entrega destes as demandas próprias do evento social que será
sempre a representação. Pois, sem esta entrega a representação
tenderá a constituir-se em um mero exercício de espelho,
no qual um grupo de artistas buscaria mostrar aos espectadores uma reflexão
a respeito da vida, uma espécie de demonstração da
vida.
No entanto, a performance teatral é por excelência uma cerimonia
social. Como afirma o estudioso francês Jean Duvignaud, esta é
uma cerimonia social diferida mais que uma re-apresentação
da vida social ela se articula enquanto uma prática social com
condicionamentos particulares que a caracterizam como um acontecimento
vivencial. Este se dá de forma combinada com a vida social, sendo
uma construção social que fala da sociedade ao mesmo tempo
que só pode existir como evento de socialização (Duvignaud,
1979). Como cerimonia o teatro comprime os acontecimentos e os tempos
sociais sendo ao mesmo tempo uma prática social com regras particulares
que não necessariamente se referem aos temas da dramaturgia. Jean
Duvignaud reconhece uma distinção entre a cerimonia teatral
e a cerimonia social que segundo ele "não radica na oposição
superficial entre existência imaginária e existência
real, senão pelo fato de que no teatro a ação se
da a ver na forma de espetáculo" (Duvignaud, 1979; 25),
assim o sentido da exposição, ainda que sempre articulado
como prática mimética, prevalece como ato social. É
exatamente esta diferença que importa na compreensão dos
fenômenos do ator, será este o agente fundamental desta decisão
de "se dar a ver" que delimita a fronteira da teatralidade.
O ator é um indivíduo que escolhe operar como "sacerdote"
desta cerimonia. Utilizo aqui o termo sacerdote sem querer atribuir ao
teatro uma característica para-religiosa, quase mística.
Apenas reconheço no papel do ator a função de veículo
dos acontecimentos cênicos, aquele que é responsável
por fazer concreto o desejo de vinculação entre os indivíduos
comprometidos no espetáculo, na cerimonia. Este papel de portador
dos elementos de conexão, esta tarefa eminentemente provocadora,
já indica o terreno do risco. Aquele que provoca se faz responsável
dos desdobramentos dos seus atos, e por isso mesmo corre com os riscos
de ter que responder às demandas potenciais do público.
Em uma comunicação apresentada no III Colóquio Internacional
de Etnocenologia realizado em Salvador em 1996, eu afirmava que "Por
definição, a arte de atuar é uma prática na
qual o artista se expõe e se lança no território
do desconhecido. Atravessa fronteiras expondo seu corpo e sua mente a
condições adversas e, paradoxalmente, é ali que ele
encontra o prazer. Essa é uma constatação da prática
milenária da arte teatral: ser exposto, expondo as pulsões
coletivas. O ator é um indivíduo que vive em um universo
de riscos desejados. Desde os referentes da nossa realidade cotidiana
vemos o risco eminente quando se opta pelo trabalho da atuação,
pois, apesar de estarmos na era da simulação por excelência,
a profissão de ator, via de regra, não recebe gratificação
que permita uma vida de abundância econômica. Só recebem
altas remunerações aqueles que simulam ser atores/atrizes
submergidos nos desígnios da estrutura econômica do chamado
star sistem. Este o risco social adquire necessariamente maiores dimensões
quando o ator entende sua arte como uma prática social fundamentada
em uma função transformadora" (Carreira, 1997).
Não há novidade em identificar o risco existente no trabalho
do ator, mas, a consciência de que a performance se constitui sobre
uma base de risco, que é particularmente importante para a qualidade
da mesma, não é um assunto muito discutido no meio teatral.
Poderíamos dizer que não é um tema tornado consciente
na prática do ator, por isso mesmo se faz interessante tentar uma
reflexão sobre a importancia do risco na constituição
da performance. Ao contrário do que muitos diretores opinam a consciência
do risco no exercício da atuação é uma premissa
fundamental para o domínio das variantes às quais estará
submetido o ator.
Propor refletir sobre a idéia de risco no trabalho do ator significa
supor uma atitude de discussão do próprio trabalho do ator.
É fundamental procurar um distanciamento daquelas atitudes que
encaram a formação do ator como um ato de simples aprendizagem
técnica. Esta aprendizagem deve ser transformada, ou melhor consolidada
como uma experiência vivencial cujo eixo será o enfrentamento
com seus limites tanto mentais como físicos.
Os críticos poderão argumentar dos riscos implícitos
nesta proposição, pois, supostamente o diretor que encaminha
seus atores ao enfrentamento com o risco estará detonando experiências
que ele mesmo poderá não estar apto para operar como elemento
de contenção. Assim, o exercício tenderia a se transformar
em um enorme desgaste de energia por parte dos atores, com uma grande
potencialidade de descontrole, enquanto o diretor ficaria em uma posição
de observador privilegiado da "tragédia" alheia, sempre
pronto para utilizar os resultados em suas encenações.
Certamente, estes acontecimentos estão na esfera do possível.
Mas, quando proponho o reconhecimento do risco e a pesquisa em torno dele,
suponho que esta tarefa será uma experiência compartilhada
por toda a equipe comprometida nela. Este compromisso deverá ser
muito mais profundo que um mero acordo verbal, deverá ser um projeto
discutido e elaborado coletivamente. Se faz aqui necessário diferenciar
esta proposição de enfoque coletivo de qualquer idéia
que se aproxime aos procedimentos das terapias grupais. Um grupo de trabalho
teatral, ainda que explore os terrenos da subjetividade dos seus indivíduos
deverá ter claro que as tarefas terapêuticas apresentam características
que distam muito das buscas estéticas e técnicas que cortam
transversalmente toda a experiência subjetiva relacionada às
pesquisas teatrais.
O diretor Augusto Boal, no seu tratado de "teatro-terapia" chamado
O Arco-Iris do Desejo, expressa uma idéia refente ao perigo do
teatro, que está sintetizada da seguinte forma: "Ser ator
é perigoso; por que? Porque a catarse que assim se busca não
é inevitável. Mesmo tendo todas as seguranças da
profissão, mesmo tendo todas as projeções rituais
teatrais, mesmo que se estabeleçam teorias sobre o que é
a ficção e o que é a realidade, mesmo assim esses
personagens despertados podem se recusar a voltar a dormir, esses leões
podem se recusar a voltar para o zoológico das nossas almas e às
suas jaulas" (Boal, 1996; 52). O risco do teatro não está
em deixar que "demônios" tomem conta dos atores tal como
obsseções de espíritos descontrolados: Não
se pode crer que a experimentação cênica com diferentes
formas de caráteres seja um caminho para a loucura e o descontrole.
Se algum caso é conhecido neste sentido será nada mais que
uma excessão que nos falará de alguma psicopatologia que
eclodiu em determinado momento, mas, que não tem nada a ver com
nossa prática de recriar personagens. Porém, o risco é
um componente transformador sim, mas transformador porque sua experimentação
propicia descobertas que estão relacionadas com a construção
do sujeito que é o ator e não com a provocação
de instintos primigênicos que podem escapar de nosso contrôle.
O grande mestre francês Jean-Louis Barrault afirmou que o teatro
"é, entre todas as artes, a mais viva, não a mais pura,
senão a mais viva. Portanto, é mais mesclada. Não
se pode praticá-la tampando-se o nariz. É uma fusão
humana onde há de tudo, do melhor e do pior (...). [Está]
baseado essencialmente na recriação do Ato no sentido mais
profundo, o ato de vida.."(1) Consequente com esta visão do
teatro Barrault afirma que "o teatro é uma arte do presente,
uma arte carnal, magnética por excelência, [que] se apoia
essencialmente na sensação e não na idéia"(2).
O pensamento de Barrault permite uma leitura da complexidade do fazer
teatral, a partir da compreensão de um aspecto fundamental: a fusão
entre o pensar e as pulsões que são a marca determinante
da vida no espaço cênico. É nesta zona de intersecção,
de mescla que fica mais claro como o risco, por tratar com os impulsos
e experiências que não estão dominados pelo racionalismo,
cria condições para uma experimentação em
um terreno mais vital da constituição do ator.
O teatro que propunha Antonin Artaud nos seus delírios premonitórios
era um teatro que como a peste se disseminasse, que gerasse o caos, ou
melhor que criasse como a peste um "transbordamento de vícios,
uma espécie de exorcismo total que assola a alma e a espiaça
(...) que se apodera das imagens adormecidas, da desordem latente e as
impulsiona de repente até o ponto dos gestos mais extremos"
(Artaud, 1984: 39), este teatro seria necessariamente um teatro fundado
no risco. O ator que busque essa fronteira que almejava Artaud estará
certamente caminhando no sentido de tomar, com o seu ato criador, o compromisso
de gerar rupturas pessoais e também sociais. Artaud afirmava que
o "teatro essencial é como a peste, não por que é
contagioso, mas sim porque, como a peste, é a revelação,
a ascenção para o primeiro plano, a exteriorização
de um fundo de crueldade latente através do qual se localizam num
indivíduo ou num povo todas as possbilidades perversas do espírito"
(Artaud, 1987; 43). A proposta do teatro artaudiano se apresentava fundamentalmente
como um teatro que faria da arte de representar uma cerimonia no sentido
mais estrito, uma cerimonia na qual seus participantes buscam uma comunhão
construida, não apenas por intermédio do simbólico,
mas, fundamentalmente pela via de um contato que se daria através
dos elementos vitais, como diria Artaud através da "liberdade
negra do sexo" que se conquiste na cena. Efetivamente, o pensamento
artaudiano nos faz crer na inevitabilidade de uma alta quota de enfretamento
com os riscos, que supõe tal busca do ato essencial.
A partir destas idéias é interesante buscar uma relação
com o pensamento de Jerzy Grotowski, que com seu Teatro Laboratório
fez a experiência de levar o ator ao ato de desvendar os elementos
fundacionais do seu ofício na relação com a construção
do ato teatral. Para Grotowski a classe de compromisso exigida do ator
para que este pudesse alcançar a qualidade necessária da
representação significava uma radical atitude de ruptura,
que engendraria não somente uma nova postura social, mas, fundamentalmente,
um grande risco que seria o de re-descobrir a essência do teatro,
como processo para definir sua própria essência. A idéia
grotowskiana da "arte como instrumento", que supera o ato representacional,
constitui uma passo a mais na direção da pesquisa acerca
do ponto de contato entre o ser e a entidade do ator, Grotowiski chega
ao arriscado limite de propor algo assim como o fim mesmo do teatro.
As proposições de Antonin Artaud e o trabalho de Jerzy Grotowski,
funcionaram, nos renovadores anos 60/70, como base de sustentação
das práticas de diversos grupos que tinham suas experimentações
cênicas emparentadas e/ou sustentadas diretamente por atitudes ideológicas
de ruptura com o modelo cultural dominante. Estes grupos se caracterizaram
por adotar posturas artísticas dispostas ao enfrentamento com as
normas do establesment. De fato, isto implicava assumir os riscos decorrentes
destes compromissos, que naquele momento histórico também
podia significar assumir riscos físicos. O caso do grupo norte
americano Living Theatre é exemplar. Coerentes com suas posições
combativas os atores deste grupo, encabeçados por Judith Malina
e Julian Beck, não se recusaram a enfrentar a repressão
policial e insistiram em realizar suas atividades no território
brasileiro em plena ditadura militar (3). Vários grupos brasileiros
também mantiveram com suas práticas teatrais uma atitude
de enfrentamento aos riscos que implicavam aquele momento histórico,
como foi o caso dos grupos Arena e Oficina cujas atividades implicaram
em prisão e exílio tanto para José Celso Martinez
Corrêa como para Augusto Boal.
A classe de risco a que estavam submetidos estes grupos era bastante objetiva,
por tratar-se de riscos referentes ao contexto político. Mas, é
interessante compreendê-los como componente da "existência
arriscada" inerente ao fenômeno teatral enquanto prática
questionadora das "verdades" humanas.
Se buscamos compreender o risco no interior da experimentação
técnico-expressiva como ponto de conexão das circunstâncias
gerais do fazer teatral, como foi explicitado anteriormente, com as práticas
específicas de treinamento, veremos uma série de possibilidades
que dirão respeito à construção do discurso
teatral.
O ator aprende corporalmente, isto é, até a experiência
mental dos atores só flui se há vivência corporal
que teste e a consolide como aprendizagem. Por isso é válido
afirmar que o ator é um dançarino, pois, seu desempenho
e pesquisa se dão, fundamentalmente, através da experimentação
corporal, da performance física que se articula com a construção
de estruturas emocionais, que por sua vez operam como motor das suas ações
cênicas. Desde este ponto de vista é possível afirmar
que o trabalho com os elementos de risco constitui um estímulo
vital na busca de possibilidades de investigação do potencial,
tanto do ator frente às exigências da performance como dos
processos de criação de personagens.
Cabe estudar como o risco interferiria na transformação,
primeiro da atitude do ator frente ao fazer teatral, e posteriormente
na rearticulação dos vínculos existentes entre o
espetáculo e o público.
O risco físico no processo de preparação do ator
Refletir sobre o ator nos propõe a seguinte questão:
quais são as expectativas que temos em relação ao
ator na contemporaneidade? Seria um ator polivalente, como nos faz crer
as exigências dos meios de comunicação, ou um ator
fortemente vinculado com um projeto grupal, como propõe certos
grupos teatrais? Efetivamente, o paradigma de ator que estamos buscando
neste final de milênio está, predominantemente, marcado pelas
condições do teatro na atualidade, e é necessário
reafirmar esta condição particularmente ambígua do
teatro na atualidade. Se por um lado se percebe a simples vista que no
panorama dos mass media o fenômeno teatral não passa de uma
manifestação marginal sem possibilidades de alcançar
um lugar de arte necessária ante as - supostamente infinitas possibilidades
dos meios massivos - , ao mesmo tempo podemos perceber o teatro como uma
persistente forma artística que reforça sua característica
de arte local, enquanto manifestação cultural que mantém
vínculos vitais com seu lugar de gênese. Certamente, seria
possível afirmar que existem formas teatrais que respondem a modelos
transnacionais que exercem a força de modelos dominantes, isto
é inquestionável, mas, a existência deste fenômeno
não esconde o fato de que a prática teatral majoritária
se dá no campo dos modelos marginais(4) e em circunstâncias
absolutamente regionais. A complexidade de elementos que estão
presentes quando tratamos de refletir sobre o ator no contexto cultural
contemporâneo nos obriga a trabalhar com uma premissa que, queiramos
ou não, partirá da idéia de fragmentação.
Neste caso, da fragmentação dos paradigmas do ator que anteriormente
funcionaram como referência para a delimitação de
procedimentos e métodos de formação atoral. Por isso,
a busca de um elemento que tenha a característica de partícula
fundamental que possibilite abordar, senão a essência do
ator, pelo menos o ponto disparador da geração deste, será
um instrumento extremamente útil para aqueles que pretendem refletir
sobre o ato de atuar.
Não é estranho à teoria teatral a preocupação
dos diretores em buscar que o ator se disponha, de uma maneira particular,
para enfrentar o trabalho cênico. Mas, as propostas de reposicionamento,
que já formam descritas de formas muito variadas em diversos manuais
de atuação, sempre supõe o risco para o praticante
(5). Estas propostas se relacionam com os procedimentos necessários
para que um indivíduo passe a atuar, assumindo o papel de atuante.
O diretor Antunes Filho, descrevendo em 1991 seu trabalho no processo
de formação dos atores no Centro de Pesquisas Teatrais (CPT)
em São Paulo, afirmava que no início do trabalho era necessário
"quebrar as carapaças dos atores (...) a primeira coisa a
fazer era desequilibrar o ator" (Carreira, 1992; 62). A agressividade
dos procedimentos de Antunes Filho se materializava na violência
utilizada no processo de formação do ator. Estas situações
produzidas nas sessões de treinamento e ensaio no CPT, visavam
encontrar uma nova postura dos atores frente ao ato de representar. Esta
agressividade, a violência podem (e são) criticadas duramente.
No entanto, não vem ao caso aqui discutir a efetividade ou a correção
das idéias de um diretor em particular, mas, sim reconhecer que
esta transposição do estado prévio à atuação
para o papel do ator, passa pela experimentação de risco.
No ofício do ator, à diferença de outras profissões,
o risco está presente com pressuposto básico, pois, atuar
é expor-se, submeter-se ao olho alheio, à crítica.
Neste sentido é interessante tomar em consideração
a abordagem que faz Eugenio Barba, no seu livro A Arte Secreta do Ator,
do papel das lutas marciais na conformação de um saber corporal
para o ator e as influências destas técnicas na criação
e um estado "pré-expressivo". Segundo o pensamento da
Antropologia Teatral a pré-expressividade seria "um nível
básico de organização comum a todos os atores, (...)
este conceito não leva em consideração as intenções,
sentimentos, identificação ou não-identificação
dos atores com a personagem, emoções" (Barba/Savarese,
1995; 187). Este nível de tensão que sem querer expressar
é capaz de suscitar emoções está diretamente
relacionado com as possibildiades do ator tornar sua presença atraente
de forma imediata para o espectador. Para Barba, as artes marciais propiciam
a ruptura com a automatização do corpo e por isso criam
uma nova qualidade de energia para o corpo. A postura básica de
todas as lutas marciais orientais propõe um "corpo decidido
pronto para o impulso e para a ação" (Barba/Savarese,
1995). Poderíamos dizer que os elementos codificados implícitos
nas artes marciais estão combinados com os elementos próprios
de todo combate, ou seja o inusitado, a ação inesperada
do oponente, portanto o risco do golpe e do impacto. Essa combinação
de elementos implica na existência de um ritmo alternado de ações
que articula momentos de contenção e explosão que
dão ao ator, que emprega estas técnicas no seu treinamento,
um jogo direto com um risco controlado.
Quando no treinamento o ator experimenta o risco físico, está
testando suas potencialidades pessoais. Está, de forma contundente,
vivenciando a descoberta de alguns dos seus limites. Como o treinamento
tem um grande componente coletivo, o ator também está exercitando
jogos de solidariedade. Em primeiro lugar porque, via-de-regra, necessita
dos seus companheiros para as práticas físicas, desenvolvendo
assim relações de confiança e entrega com o descobrimento
do outro; em segundo lugar porque esta experiência permite compartilhar
com os companheiros as vivências decorrentes do enfrentamento com
risco. Assim, os vínculos de trabalho são provados constantemente,
aumentando as possibilidades de que não existam relações
construidas sobre a base da máscara da falsidade. O risco físico
possibilita um desvendar dos indivíduos durante as tarefas, pois,
a segurança de cada um depende em grande medida do cuidado do outro.
Em outro sentido, o risco impõe o aprendizado de uma estrita disciplina
de trabalho. Quando se opera a grandes alturas, por exemplo, como é
o caso do uso de cordas aéreas ou trapézio, ou se utiliza
armas como espadas, o ator deverá, de forma imperativa, cuidar
de seguir estritamente todas as normas de segurança e estar atento
em ter o maior cuidado possível com os dispositivos técnicos.
O mesmo grau de atenção não existe quando os únicos
elementos em questão são a performance da voz e do corpo
na construção do personagem ao nivel de um palco seguro.
Desta forma a disciplina exigida para a manipulacão de técnicas
de risco deve ser transladada, sempre que possível, ao conjunto
do trabalho atoral. As práticas que envolvem o risco são
bastante disciplinadoras, pelo que se pode supor que uma experiência
deste tipo significa uma aprendizagem que se extende a toda prática
do grupo.
O risco físico como disparador do vínculo
Se podemos ver como o risco físico opera no processo
de formação do ator também é interessante
averiguar como ele funciona no ato mesmo do espetáculo teatral
como elemento que opera criando canais de vinculação do
binômio espetáculo-público. Muitos autores observam
que atualmente, o espectador não encontra no espetáculo
teatral substâncias que o estimule (intelectual ou fisicamente),
e por isso se distancia das formas mais tradicionais do teatro, não
se distanciando, porém, da teatralidade.
Este distanciamento das modalidades teatrais que se apresentam na maioria
das vezes carregadas de um eterno repetir formal deve ser compreendido
principalmente como uma ruptura com modelos estéticos que perderam
capacidade mobilizadora no contexto da multifacética cultura contemporânea.
Muitas vozes se alçam para dizer que na era do vídeoclip
e das mega-produções cinematográficas, o teatro tradicional
não oferece atrativos poderosos para as audiências. A esta
verdade quase óbvia, é necessário agregar que o problema
não passa apenas pela questão da renovação
dos códigos estéticos, mas, sim pela transformação
dos instrumentos de vinculação que serão responsáveis
pela qualidade e intensidade da cerimonia social que é o espetáculo
teatral.
Apesar disso, não podemos pensar que somente um teatro, ou evento
teatral como os espetáculos propostos pela Fura dels Vals (Espanha)
ou De la Guardia (Argentina), que estão fundados na utilização
de uma grande estrutura técnica que possibilita performances baseadas
em elementos quase acrobáticos associados à violência,
poderão conquistar as audiências. Seria de um reducionismo
absoluto afirmar que não há espaço para a diversidade
nos palcos (ou nas ruas), mas, nos vemos frente a um paradoxo: se por
um lado sentimos um evidente esgotamento da arte teatral no que se refere
à repercussão junto ao público, percebemos a singularidade
que ainda representa o teatro dentro do atual contexto fragmentador dos
referentes culturais.
Buscar o risco na linguagem teatral permite experimentar formas de recriação
dos vínculos com os espectadores. Desde este ponto de vista surge
a possibilidade de que o risco seja analisado como instrumento auxiliar
(não necessariamante secundário) no estabelecimento de cerimonias
teatrais. Se o simples narrar não é uma ação
poderosa o suficiente para suscitar rupturas no cotidiano daqueles potenciais
espectadores do teatro, os teatristas estarão obrigados a experimentar
novos elementos. Certamente, vemos hoje em dia variadas formas do espetáculo
teatral, muitas das quais se aproximam deliberadamente do mundo da imagem
cinematográfica, que lutam pela reconquista do público,
quando o objetivo primordial seria a reconquista dos sentidos do ato teatral.
Neste sentido, a experimentacão com o riso aponta à recriação
dos laços com o público não somente pelo inusitado
da perfomance do ator que se arrisca, mas, pela possibilidade do descubrimento
da energia dispensada pelo ator no processo de preparação
e realização do ato cênico. O reconhecimento do compromisso
que demanda o estar em cena, e a efetiva vivência que proporciona
o reconhecer o risco e sentir as emoções decorrentes no
momento mesmo da performance conformam instantes particulares que possibilitam
vínculos que são mais profundos que o simples ato de presenciar
um espetáculo. Neste caso podemos fazer um paralelo com o show
circense ao qual se reconhece um potencial "mágico",
que está dado antes de mais nada pela capacidade do artista do
circo de superar os limites do físico.
Insisto, não se trata apenas de propor espetáculos arriscados,
mas, essencialmente de se construir práticas teatrais que estejam
dispostas a romper com a rotina do espetáculo tradicional a partir
do uso do risco como forma de redescobrir uma nova teatralidade suficientemente
forte para resignificar o teatro em nossa sociedade.
Referência Bibliográfica
Artaud, Antonin. 1987. O Teatro e seu Duplo. Ed. Max Limonard. São
Paulo.
Barrault, Jean-Louis. 1992. Que es elteatro para mi. In El Teatro y su
Crisis Actual. Caracas. Monte Ávila Editores
Carreira, André. 1997. "A Noção de Risco Físico
na Formação do Ator". III Colóquio Internacional
de Etnocenologia. Salvador. UFBa.
1992. El Actor es un Ilusionista. In Revista Espacios Buenos Aires. Ano
6, nº. 12.
Duvignaud, Jean. 1980. Sociologia del Teatro (Ensayo sobre las sombras
colectivas). Fondo de Cultura Económica.1970. Espectáculo
y Sociedad. Caracas. Ed. Tiempo Nuevo.
Freud, Sigmund. 1987. Lo Siniestro. Buenos Aires. Ed. Homo Sapiens.
Grotowski, Jerzy. 1992. Em Busca de Um Teatro Pobre. Rio de Janeiro. Ed.
Civilização Brasileira.
Javier, Francisco y Ardissone, Diana. 1986.. Los lenguajes del espectáculo
teatral. Buenos Aires. Facultad de Filosofía y Letras - UBA.
Mason, Bim. 1992 Street theatre and other outdoor perfomance. London.
Routledge.
Tytell, John. 1995. The Living Theatre. Art, Exile, and Outrage. New York.
Grove Press
Dados biográficos
O Prof. Dr. André Carreira é Licenciado
em Educaçao Artística pela UnB em 1984, e Doutorado em Teatro
pela Universidad de Buenos Aires no Instituto de Artes del Espectáculo
em 1994. Desde 1985 até 1995 viveu em Buenos Aires onde dirigiu
a Oficina de Teatro do Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil
e fundou a Companhia Teatral Escena Subterránea dedicada a fazer
teatro em metrôs e ônibus. Vive atualmente em Florianópolis
onde ensina no Departamento de Artes Cênicas da Universidade do
Estado de Santa Catarina, edita a Revista Urdimento especializada em pesquisas
teatrais, e dirige o Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea
que trabalha com técnicas de risco físico.
________________________________
1 Barrault, Jean-Louis. "Que es elteatro para mi".
In El Teatro y su Crisis Actual. 1992. Caracas. Monte Ávila Editores.
P 79.
2 Idem nota anterior. P 81.
3 O Living Theatre esteve no Brasil no ano de 1970, onde
contou com o apoio do Grupo Oficina. No final deste mesmo todo o elenco
foi preso pela Policia Federal acusados de consumo de drogas, posteriormente
o grupo foi expulso do pais. Por ocasião desta visita Julian Beck
escreveu: "Eu estou com o povo que vende seu trabalho, seu corpo,
sua vida para escapar da fome" (Apud Tytell,1995; 278)
4 O conceito de modelo teatral marginal a que me refiro
diz respeito à conceituaçao proposta por Juan Villegas.
Ver "Discurso Teatral Hegemônico
5 Podemos observar que muitos mestres de atores dedicam
especial atenção ao primeiro contato do estudante com as
condições da atuação. Este cuidado se deve
ao reconhecimento dos medos próprios do iniciante e dos perigos
inerentes ao fazer do ator.
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