BAHIA, Ana Beatriz. Bordaduras na Arte Contemporânea brasileira: Edith Derdyk, Lia Menna Barreto e Leonilson (artigo de conclusão de curso de especialização, Linguagem Plástica Contemporânea/UDESC). Periscope Magazine, Florianópolis, n. 3, ano 2, maio/2002. Disponível em: http://www.casthalia.com.br/periscope/casthaliamagazine3.htm.
Ana Beatriz Bahia
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Resumo: Abstract: Palavras Chave: |
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Tanto o bordado como a costura são práticas que, em nossa cultura, estiveram restritas durante séculos ao ambiente familiar, ou seja, à casa, às mulheres e crianças (nota 1). Em um estudo que remonta os caminhos da mulher na história da arte ocidental, Whitney CHADWICK (1992) relaciona a penetração de tais práticas em atividades externas ao Lar com a introdução da mulher no campo profissional: quando a mulher saiu às ruas, levou consigo a tradição doméstica sobre a qual houvera se dedicado por tantos séculos. Essa penetração aconteceu através das escolas de artes decorativas, no século XIX, em meio à disseminação nostálgica do modelo de produção medieval (artesanal). O Romantismo contrapôs-se, dessa forma, à falta de humanidade do ideal trazido pela revolução industrial e ao anonimato dos objetos produzidos em longa escala. Esse contexto foi propício para a eclosão de um grande número de oficinas de práticas de tradição doméstica, compostas tanto por homens como por mulheres. Foi o início da re-significação de práticas como a costura e o bordado, em fina expressão artística. Anunciou-se aqui um longo processo de assimilação, pelo circuito artístico, das práticas de tradição doméstica em suas complexidades. No deslanchar desse caminho, alguns artistas serviram-se da técnica da costura descomprometidamente, ou seja, restringiram-se ao uso da plasticidade e praticidade desses recursos. Outros, adentraram os meandros da tradição de tais práticas: da memória que foi e continua sendo construída de mão em mão. Costurando alguns momentos desse caminho, intento contextualizar determinadas obras recentes da arte brasileira e destacar aquelas em que a prática da costura (ou do bordado) mostra-se em sua plenitude, como um corpo complexo, latente de uma memória particular. Continuando pelo fio do Romantismo..., não localizo nesse momento histórico as transformações estéticas determinantes para a penetração da costura e do bordado no circuito da arte erudita. Pois, mesmo com toda a exacerbação das práticas artesanais pelo Romantismo, nas galerias e museus daquela época predominaram obras executadas desde as técnicas artísticas tradicionais, seguidoras dos padrões estéticos acadêmicos. O enraizamento da estética vigente, mantinha à margem todas as novas pesquisas plásticas que tentavam penetrar o circuito artístico erudito - como a estética impressionista, por exemplo. Teixeira COELHO (1986: 125) comenta a deflagração pelo Romantismo de um estado de emergência das artes plásticas: uma situação onde a seriedade da produção artística estivera ameaçada pelo crescente relaxamento dos padrões estéticos nas camadas mais elevadas da sociedade. Mais que isso, os artistas estiveram acreditando em demasiado na qualidade dos padrões estéticos utilizados e na eficácia visual da maestria técnica. Esse foi justamente o ponto questionado pelo Modernismo artístico - então sua eficácia, enquanto movimento, para aquela época. O Modernismo, em toda sua pesquisa dita "formalista" revisou e redefiniu o fazer nas artes plásticas. Ao romper com a rigidez dos cânones artísticos, ele permitiu a incorporação de uma infinidade de novas técnicas e materiais. A Obra moderna, segundo Clemente GREENBERG, em Pintura Modernista (1997: 101), é o resultado das inúmeras tentativas de se encontrar novas formas de construção de uma imagem artística. O autor defende, em diversos artigos, que esse foi um momento da arte essencialmente pragmático. Ele usa termos como "pragmatismo" e "artesanal" - a fim de evitar o termo "formalismo" (nota 2) - para comentar a preocupação com o processo de elaboração da obra entre os modernistas. Foi uma preocupação que abriu novas possibilidades para a criação nas artes plásticas. Essa abertura no processo criativo conquistada ali foi - e continua sendo - desfrutada na contemporaneidade (nota 3). Só para citar um exemplo, entendo que a presença de práticas de tradição doméstica no ambiente artístico contemporâneo mostra-se como sintomatologia daquele passado transformador. Mais do que apenas desfrutar da grande flexibilidade (quase inexistência) de padrões estéticos, o artista de nossa época vive um processo criativo povoado por incertezas e questionamentos decorrentes daquela liberdade no fazer. O que percebo como curiosa, em uma visão bastante geral sobre as mega-exposições, galerias e museus de prestígio internacional de hoje, é a "multiplicidade" como elemento próprio das artes plásticas deste tempo. Essa opinião aparece no discurso de críticos de nossa época. Suzi GABLIK (1987: 13) marca a multiplicidade contemporânea, como diferença fundamental entre os artistas deste século e os anteriores historicamente: antes existia algum consenso quanto às técnicas, visão de mundo e convicções religiosas. Melhor dizendo, as divergências eram sutis, comparadas às do século XX. Ronaldo BRITO também reflete sobre esse assunto:
Parar em tal constatação acerca da contemporaneidade não nos ajuda em muito para o desfrute e análise da arte produzida agora. Então, como pensá-la? Entendo que as inúmeras particularidades, que compõem a diversidade de nossa época, são pontuáveis. Mas se, por um lado, querer abarcar todas essas particularidades parece-me uma empreitada digna de forças supra-humanas, por outro, vejo a possibilidade de destacar algumas delas, a fim de que se possa construir uma reflexão acerca do assunto. Em meio à diversidade contemporânea interessa-me um aspecto particular: a recorrência de práticas de tradição doméstica, como a cestaria, o trabalho com a agulha e linha e a cerâmica, nas artes plásticas brasileira das duas últimas décadas. Tadeu CHIARELLI (1997: 08) constata, na arte brasileira dos anos 80-90, uma nova atitude dos artistas em seu processo - isso como reflexo de influências nacionais (Neoconcretismo) e internacionais (Pós-mínimal). Ele vê a incorporação das práticas de tradição cultural não hegemônica (costura, cestaria, marcenaria) como um dos reflexos dessa nova atitude. É partindo de tal informação que teço algumas considerações sobre essas influências em suas relações históricas, culturais e/ou individuais, que envolvem o trabalho com agulha e linha de alguns artistas brasileiros das décadas de 80-90. Para pensar essa questão, dois pontos me parecem singularmente relevantes: primeiro, como já introduzi, é a relação existente entre a abertura que se deu no processo criativo desde o Modernismo e a incorporação de procedimentos como o bordado e a costura pelo circuito artístico internacional. Do Modernismo em diante, são vários os momentos da história da arte que podem ser entendidos como predecessores (estéticos e/ou conceituais) dessa redefinição dos limites da arte erudita. Segundo, é a vinculação que percebo existir entre o bordado/costura com questões poéticas marcantes na arte contemporânea. Devido ao seu historial doméstico, essas práticas estão ligadas a uma memória coletiva de ambiente familiar, da infância e do lar. Essa memória mostra-se como transfiguração de uma questão recorrente na arte de hoje: a intimidade do indivíduo. Percebo esse intuito poético como expressão da necessidade do indivíduo de nossa época em firmar sua identidade (nota 4). Mostrar origens é um eficaz modo de falar das nossas raízes.
Um outro lado de Duchamp O Modernismo marcou as artes plásticas como tendência à especialização das disciplinas artísticas (pintura, escultura, desenho); definindo as questões pertinentes à serem discutidas por cada uma delas, delimitou fronteiras entre elas. Uma das conseqüências de tal atitude, é o aspecto rigoroso, sóbrio, "frio" que marca a obra de algumas investidas modernistas, como as do Construtivismo, Cubismo Sintético e do grupo De Stijl. Mas, como coloca GREENBERG (op.cit.: 128), esse foi seu mal necessário. Tal sobriedade reflete questões que contagiaram nossa cultura no início deste século, externas a própria arte, como o cientificismo e o criticismo. O autor apoia-se em Kant para comentar a tendência ao auto-exame, à crítica de si mesmo, presente na sociedade Moderna: "Identifico o modernismo com a intensificação, a quase exacerbação dessa tendência autocrítica que teve início em Kant. Por ter sido o primeiro a criticar os próprios meios da crítica, considero Kant o primeiro verdadeiro modernista" (ibid.: 101). Para Greenberg, a autocrítica, provinda da filosofia, fez-se necessária já desde fins do século XIX para consolidar - ou preservar a reputação de - diversas instâncias de nossa cultura. A Arte adotou tal postura; por isso o intuito crítico dos ismos modernistas - sobre a Arte e/ou História da Arte. A postura extremada de Duchamp é um exemplo marcante desse criticismo na arte Moderna. Duchamp não se deteve em aspectos estéticos da arte para fazer sua crítica, intentou sim atacar a própria instituição Arte - e nesse aspecto suas investidas foram mal sucedidas (nota 5). No entanto, essas atitudes repercutiram além de suas intenções. Mesmo sem planejar, Duchamp trouxe uma série de ganhos para arte do século XX. Por um lado, mais específico, ele é o responsável maior pela inauguração de uma vertente artística que privilegia o caráter objetivo da arte (em detrimento do intuitivo), onde o artista adota uma postura bastante racional em seu processo (menos subjetiva e auto-expressiva). Se partimos dos seus Readymades, podemos rastear essa tradição e chegarmos na Arte Conceitual e Mínimal. Por outro lado, as atitudes duchampianas instituíram questões que contagiam de forma mais abrangente a arte posterior a ele: em primeiro, o desmonte da idéia de que uma nova linguagem artística deve reavaliar as linguagens que a precederam. Em segundo, a indiferença total, por parte do artista, aos códigos hegemônicos da Arte. |
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Eva Hesse, (sem título), 1970 |
Esse entendimento fragmentado das atitudes Duchampianas, faz com que possamos reconhecê-lo em boa parte da produção artística atual. Entendo que alguns artistas brasileiros - como Edith Derdyk, Leonilson e Lia Menna Barreto - têm débito para com Duchamp (nota 6), principalmente, pela postura descomprometida que adotam em relação à tradição erudita da arte (nota 7). Não quero dizer com isso que eles adotaram/adotam a postura anárquica daquele artista em relação à Arte, nem mesmo que intentam se portar como herdeiros dele. Defendo sim que a postura flexibilizada de E. Derdyk e Leonilson diante da criação plástica só é possível, hoje, pelas transformações encabeçadas nas pesquisas modernas e, mais especificamente, pela atitude decisiva de Duchamp. |
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"Inteligência Artesanal"(nota 8) Uma série de artistas das décadas de 50 a 70 (nota 9) que, no desfrute da já conquistada abertura para uso de métodos e materiais diversos nas artes plásticas, adotaram firmemente a postura de 'artista explorador de materiais'. Foram os chamados "artistas do processo". Vertente cujo fazer destacava-se pela diversidade e complexidade de elementos. Todos os materiais que se encontravam próximos do artista, assim como todas as ações que o mesmo tinha condições de executar, eram materiais/práticas artísticos em potencial. Um processo que fez surgir um grande número de obras, cuja forma (predominantemente tridimensional) e plasticidade destacavam-se em relação a visualidade artística predominante na época. Mais do que a diversidade plástica, o que singularizou a obra desses artistas na história da arte foi a "lógica" particular que regia as suas criações: "os processos de criação [fazer] eram tratados como assunto"; ali "os meios se transformavam em fins" (WALKER, 1977: 37). Eram formas exóticas para a época, que brotavam do manuseio do material escolhido, em um processo que se definia no exato momento em que era executado. O resultado plástico, decorrente desse processo intuitivo, sempre era bem recebido, sem levar muito em conta seu valor visual. O ato do fazer, pela importância que adquiriu para esses artistas, nunca era encoberto, mas evidenciado na visualidade da obra. Esse fazer aparente é o registro da vivência intensa do um processo artístico (nota 10). Tal característica está presente na obra de Eva Hesse. O gosto da artista pelo fazer está expresso nas obras que nos deixou, na escolha que fez por métodos repetitivos e minuciosos (costura, trabalho com as rendas e bandagens) de construção de cada obra. Suas formas tridimensionais (geralmente designadas pela crítica como esculturas), construídas a partir de materiais provindos de contextos diferentes, possibilitaram-lhe diálogos bastante interessantes entre visualidades e materialidades diversas. Alguns críticos caracterizam os procedimentos de Hesse como pós-minimalista, ou seja, como uma artista que foi, ao mesmo tempo, descendente e oposta ao seu antecessor histórico Mínimal. Agrupada dessa forma, a artista em questão - juntamente com outros artistas norte-americanos da década de 70, cujos processos de criação davam-se pelo relacionamento direto e intenso com a matéria natural e/ou pré-industrial - é tida como referência maior de uma vertente significativa nas artes plásticas das últimas décadas. Tadeu CHIARELLI (1996) mostra a influência dos pós-minimalistas na arte brasileira desde a década de 70 e pontua que, aqui, ela foi digerida de uma forma particular. O caráter amplo da proposta dessa tendência - de trabalhar a partir da Matéria (material/método escolhidos) - é propício para leituras diversas: o que se entende por Matéria? Uma massa anônima, amorfa, ou um corpo mais complexo? E então, que corpo é esse? Qual sua lógica interna?. Para os pós-mínimalistas norte-americanos, a concepção industrial de manuseio da Matéria foi a que predominou. Já no Brasil, a concretização daquelas idéias, passou pela lógica pré-industrial de interação com a Matéria. É conduzindo-nos por essa linha de pensamento que Chiarelli justifica a intensificação e revalorização das práticas manuais básicas - como o trabalho com a madeira, a costura e a cestaria - na arte brasileira das últimas décadas. A
relação entre a postura dos "artistas do processo" e/ou dos pós-mínimalistas
com a arte brasileira contemporânea envolvida com procedimentos da tradição
cultural não hegemônica, não está expressa apenas no discurso crítico
daquele autor, mas em depoimentos dos próprios artistas. Leonilson é
um exemplo (nota 11). Ele, em
entrevista concedida a Lisette LAGNADO (1998: 87), denunciou sua admiração
por Hesse. Comentou também, baseado em visitas que havia feito a uma
série de exposições do eixo Rio-São Paulo no final dos anos 80, a forte
e silenciosa influência dessa artista na arte brasileira da época. Em
seu discurso, ficou evidente a indignação pelo fato de que tais resultados
plásticos (provenientes do uso da costura e de panos já curtidos) estavam
ali apresentados como novidade. |
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Lia Menna Barreto, |
Quanto
a esta última colocação de Leonilson, talvez isso não se tenha dado
por má intenção dos artistas que expunham; talvez eles não se percebessem
tão próximos assim de Hesse, como fazia Leonilson em sua leitura. Entendo
que já eram visíveis as diferenças entre a arte brasileira produzida
por volta dos anos 80 e a Obra de Hesse. Refiro-me àquela singularidade,
pontuada por Chiarelli, na arte brasileira influenciada pelos pós-mínimalistas.
Falo da lógica pré-industrial que foi adotada pelos artistas brasileiros
em sua relação com a Matéria. Nem todas as obras de Hesse apresentam
práticas artesanais básicas, como a costura. A manufatura com materiais
pesados, que exigem o uso de ferramentas mais complexas, também fizeram
parte da "paleta" da artista. |
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Os artistas brasileiros, desde os anos 70, vêm percebendo a rica possibilidade das práticas e materiais de uma tradição cultural (dita) "popular". Essa situação só se intensificou nos anos 80 e 90. Isso - aliado à busca da "lei interna" da Matéria - trouxe para o circuito artístico brasileiro erudito a própria tradição dessas práticas/materiais. Ou seja, junto com o conjunto tecido-linha-agulha foi incorporada a tradição doméstica da costura; com o vime e a corda trançados, a tradição da cestaria; com a madeira semi-bruta, a tradição da marcenaria (dos santeiros principalmente). Os trabalhos de artistas como Leonilson e Lia Menna Barreto explicitam isso. Eles não se apoiaram descomprometidamente na técnica da costura, pois suas obras manifestam o interesse de adentrar a lógica interna de tal prática: de um modo de fazer repetitivo, quase que compulsivo, que exige paciência, e com um acabamento digno de uma 'boa costureira'. Tais artistas, compreenderam (intuitivamente ou não) que cada matéria/prática é um corpo complexo, que se apresenta com códigos e possibilidades próprias, e que isso deve ser considerado. CHIARELLI (1996: 03) aponta essa questão quando comenta a existência de uma "inteligência interna" nos procedimentos da "tradição popular", que foi incorporada por muitos artistas daquelas décadas juntamente com as práticas não-eruditas:
Percebo que essa incorporação da lógica interna da prática da costura, deu-se de forma diferenciada de artista para artista - fato que não valoriza o processo de um em detrimento do de outro, apenas pontua interesses diversos. Por exemplo, nos bichos de pano e bonecas de Lia Menna Barreto (nota 13) é visível a intenção de uma costura bem construída enquanto costura: que não fiquem buracos, que os pontos dados a mão tenham uma certa uniformidade, que os restos de linha não fiquem de sobra para fora, que o zíper empregado seja bem colocado, que a costura mantenha o tecido bem esticado, que não apareçam "papadas" e assim por diante. Olhando essas peças, a preocupação de um tipo de acabamento característico da costura é explícito. Já na obra de Edith Derdyk o acabamento não está dado segundo os parâmetros da tradição da costura. Mesmo servindo-se dessa técnica o processo da artista investiga especificamente as possibilidades da linha: de uma linha que perfura superfícies de plástico através da agulha (nota 14). Percebo nessa artista a influência das pesquisas modernas sobre o desenho (desde a idéia de desenho-expandido). Logo, em sua obra, a linha (de costura, arame e lã) percorre caminhos determinados em locais diversos (plásticos, outros materiais e no próprio espaço físico) no intuito de dividir espaços e marcar matérias. Quando a artista expõe seu entendimento de Linha, tanto fica clara a relação de sua Obra com a idéia de "desenho expandido", como fica explícito o entendimento que tem da costura como processo condutor da linha:
A
diferença que aqui me interessa apontar entre essas duas artistas reside
nas suas intenções (que repercutem em atuações) diversas. Edith Derdyk
apropria-se da "costura" como um instrumento. Como ela mesma coloca
(id., 1998), desde 88 que a costura foi incorporada ao seu processo
como um "procedimento construtivo" apenas. A costura entrou na obra
de Edith Derdyk para atender às necessidades de seus questionamentos
artísticos, comprometidos com questões específicas da arte erudita
(nota 15). Lia Menna Barreto,
dedica-se à prática da costura para construir uma obra na qual pulsam
tradições diversas. Sua obra se processa num entrelaçamento de vozes
diversas: a tradição da costura que fala junto com a poética da infância
e da família expressa no bicho de pano, que entra em diálogo com um
espaço artístico erudito (considerando a obra vista desde galerias e
museus de arte) onde o objeto se insere na tradição artística, tudo
isso convergindo para questões bastante particulares que compõem a poética
da artista. |
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Edith Derdyk, |
No
processo de incorporação de práticas como a costura, o reconhecimento
da estética particular de cada uma delas é determinante para compreensão
de sua "inteligência interna". A estética da "boa costura", está no
detalhamento e acabamento das peças de Lia Menna Barreto. A estética
da cultura nordestina está presente nas cores de Leonilson e até mesmo
em vários esquemas representativos que ele adotou. As preocupações que
Leonilson tinha em construir ponto a ponto os seus bordados, de que
cada ponto fosse bem feito - caso contrário ele o desmancharia e refazê-lo-ia
- e de dispor de uma variedade de pontos, são preocupações dignas de
um bom bordadeiro de toalhas e lençóis. |
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Ao incorporar a costura/bordado, esses artistas a entenderam como algo a mais do que uma mera técnica, adentraram em sua estética particular, calcada em uma tradição (dita) "popular". Entendo
que as distinções entre padrões de arte erudita e "popular" não são
tão claras assim. Determinadas questões estão em constante trânsito
entre uma e outra tradição artística - variando por épocas, de acordo
com o contexto sócio-cultural (nota 16). |
Leonilson, |
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A idéia da beleza como aquilo que agrada ao olho de quem vê, é um exemplo. Questão tão característica da tradição artística, a partir do início deste século foi questionada na produção erudita. Já na contemporaneidade, uma série de artistas - como Beatriz Milhares, Tunga e Élida Tessler - não adotam mais a postura modernista que desmerece tal concepção de beleza. Tadeu CHIARELLI (1997) chama a atenção para o fato de que, na obra dos artistas que adotaram práticas de uma tradição cultural não hegemônica, é recorrente a presença de tal concepção de beleza. Este fato, em grande medida, é o que caracteriza o valor contemporâneo na obra destes artistas na medida que atualizam a ruptura duchampiana.
As Relações do Fazer (nota 17) A idéia de um fazer regido pela matéria, retoma um tipo de processo criativo mais intuitivo, pautado pelos entraves e descobertas do manuseio do material. Segundo Annateresa Fabris (MAC-USP, 1994) o impasse criativo do artista que parte da matéria - ou daquele que remodela suas intenções no manuseio dela - é saber percebê-la: "libertar as possibilidades formativas da matéria e de interpretá-la em sua natureza intrínseca". Tal idéia entra em concordância com a busca de uma "inteligência interna" das práticas artesanais, referida por Chiarelli: na busca da natureza intrínseca de materiais como o tecido, a linha, a madeira bruta, etc., o artista acabou adentrando à lógica de manuseio particular de cada uma dessas matérias. Ronaldo REIS (1998) comenta que o retorno ao processo criativo mais artesanal não se manifestou apenas no advento das práticas de tradição não-hegemônica. Uma transfiguração mundial desse retorno ao fazer artesanal foi o fenômeno de retorno à pintura da década de 80. Segundo ele, essa foi uma reação das artes plásticas às conseqüências dos avanços tecnológicos deste século: ao maior distanciamento entre os indivíduos, ao mascaramento das identidades e ao desencadeamento do crescente processo de individualização. A pintura respondeu a isso estampando, em imponentes dimensões - considerando a predominância de telas gigantescas nessa época -, uma vivência intensamente subjetiva do artista com o ato de pintar.
Reis
(ibid.) ressalta que, na base da revalorização do processo artesanal,
esteve a retomada de um valor fundamental da Arte: o prazer de fazer.
Por trás da intensidade dramática da pintura dos anos 80, pôs-se o prazer
de manusear o material, de prolongar esse momento ao máximo, de optar
por métodos de criação plásticas que permitissem a proximidade corpórea
entre o artista e a obra. Esse prazer contaminou uma série de tendências
artísticas desde aquela época - são aquelas que se distanciam da frieza
e objetividade das investidas preponderantemente conceituais e minimalistas.
Reis defende, inclusive, que a marca da arte pós-moderna está no reconhecimento,
por parte dos artistas e do público, de que o prazer é fundamental
na realização e apreciação da obra de arte. |
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Edith Derdyk, |
Entendo
que a importância de se considerar a revalorização do prazer em nossa
época não pára em tal constatação; isso abre caminho para se pensar
os diversos entendimentos de prazer nesta época de concepções artísticas
múltiplas - no sentido de que o prazer de Hermann Nitsch ao fazer seus
rituais de estética pagã, parece ser bastante diferente do que tinha
Leonilson em bordar seus paninhos. Como não foi a esse tipo de análise
que me propus aqui, limito-me a comentar diferenças entre o prazer de
fazer no processos de Leonilson e Edith Derdyk e a prática da
costura/bordado. |
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O
comentário de Annateresa Fabris sobre a obra de Edith Derdyk (MAC-USP,
1994) ressalta a relação harmônica e prazerosa que a artista estabelece
com o material. A costura exige isso de quem a adota, caso contrário,
o que levaria um(a) artista a ficar horas e horas concentrado nessa
rotina física, tendo à sua disposição uma infinidade de recursos tecnológicos
atuais que suprem a função pragmática da costura?
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Leonilson, |
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DERDYK (1997) faz-se
um questionamento semelhante:
Juntando a indagação dessa artista com as idéias acerca do prazer na contemporaneidade... parece-me que a justificativa de Edith Derdyk para costurar está mais de acordo com os ideais de alguns modernos de postura espiritualista (como Kandinsky e Mondrian) - que buscaram valores humanos através da Arte, como o senso de liberdade -, do que com a idéia de satisfação mais imediata que REIS (op.cit.) pontua como marca da contemporaneidade. Edith Derdyk tem esperança de que o amanhã seja melhor do que o hoje. Nesse contexto, a costura mostra-se a ela como instrumento que a ajuda a esperar aquele futuro promissor. Já o imediatismo do prazer contemporâneo é emblema de um momento histórico que não expressa grandes esperanças em relação ao futuro; onde as atitudes das pessoas são voltadas para o momento presente e para si próprias, ou seja, descomprometidas com ideais coletivos. O discurso intimista, com o qual uma série de críticos (nota 19) caracterizam as atitudes em arte contemporânea, é outro elemento que não visualizo no discurso de Edith Derdyk. Mais uma vez, percebo que a relação que essa artista estabelece com a costura está num limiar entre as intenções modernas (busca de transformação da/pela Arte) e a plasticidade contemporânea. Quanto à palavra prazer, não se faz presente em nenhum momento do discurso de Edith Derdyk. A artista apenas manifesta sua vontade de fazer e a satisfação que tem naquilo que fez:
Em diversos momentos de seu texto, ela comenta o caráter cansativo, repetitivo, da costura. Em um parágrafo específico, Edith Derdyk relaciona sua performance de costurar com a desgastante situação do ser mitológico Sísifo. Suas palavras transpiram um fazer que não parece ser nada agradável para a artista:
Já LEONILSON (apud LAGNADO, 1998) denuncia claramente o prazer que sente em construir seus bordados: "(...) porque o negócio da mão é o prazer de dar o ponto, de errar, de cortar e de voltar de novo" (ibid.: 86). Segundo ele, é esse prazer que permite a descoberta das diversas possibilidades da prática/material utilizada. É no fazer prolongado que novos pontos de bordado são descobertos, que os acasos do processo são incorporados como novas possibilidades. É ali que a prática é apreendida e remodelada:
Esse é o ponto de concordância entre esses dois artistas citados: o entendimento de que o fazer é um importante processo de aprendizado do/para o artista. Não apenas por questões práticas de manuseio da matéria, como Leonilson pontuou nas palavras citadas acima, mas em questões da própria vida. DERDYK (op.cit.) percebe sua costura como um ato performático que a enriquece; que a faz conhecer melhor a Matéria, a Arte - "Arte não se sabe, se faz para saber" - e a si própria - "Só sei o que sou quando já passou. Resíduos". Para ela os vestígios do ato são registros de sua vivência, que a lembram quem é e sobre o que fala. Edith Derdyk ressalta esse aspecto de seu processo, dizendo que a repetição própria do ato da costura utilizada por ela, reafirma o caráter performático de sua obra e rebaixa a importância visual da mesma:
O
depoimento de Edith Derdyk sugere um descomprometimento com o resultado
visual do fazer - uma postura que a aproxima dos "artista do
processo". Tal entendimento não é unânime entre os artistas que se ocupam
da costura. Lia Menna Barreto é um exemplo contrário, no sentido em
que sua obra explicita uma preocupação com a visualidade da costura
elaborada. |
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Lia Menna Barreto, |
Salvas
as diferenças na concepção de Obra..., o que se repete nos três artistas
aqui citados é a relação estreita que estabelecem com a Matéria.
Essa relação só é possível pela postura não-hierárquica deles
para com as "ferramentas" do fazer. Ou seja, nem o artista adota
uma postura altiva para com a matéria; nem esta última os domina por
completo - como acreditavam os artistas do processo, [Mas como um ser
inanimado poderia dominar o intuito criador do artista?]. Essa relação
é rica por propiciar ganhos para ambas as partes: a matéria transforma-se
fisicamente e em suas possibilidades de significação; o artista apreende
nesse processo questões que lhe podem auxiliar na dissolução dos "nós"
conceituais, temáticos, formais, existenciais... de sua vivência artística.
Trata-se quase de um processo alquímico. |
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LEONILSON, além de valorizar o momento do fazer em seu processo, reconhece a existência de um nível de desfrute desse processo que só pode ser penetrado pelo próprio autor. Ele, quando indagado a respeito do motivo de não confiar a terceiros a execução de suas obras, responde ser esta a parte mais importante do processo de criação:
Entre as inúmeras "energias" produzidas no fazer - referidas aqui por Leonilson e também por Edith Derdyk - percebo estar a carga simbólica própria da costura/bordado. Uma simbologia que permeia tanto a imagem, como o ato (que enlaça e amarra) da costura. O ato de costurar - assim como o de tramar, tecer - mostra-se como simbolizante de ligação, de inter-relação entre as "coisas" (conceitos, situações, pessoas, etc.). São as costuras que fazemos em um texto, a trama das idéias, um enlace afetivo. Poderia adentrar no trabalho dos artistas aqui comentados por este fio interpretativo. Mas não o faço, pois optei pelo estudo do contexto histórico cultural de suas obras. Mesmo assim, cito alguns comentários que partem desse significado da linha e da costura, para o fazer de artistas que se servem de tais simbolizantes. Terry Myers (MAC-USP: 1994) que, ao escrever para uma exposição conjunta de Edith Derdyk e a artista norte-americana Brenda Baker, aproveita metaforicamente as amarrações da costura, presente no processo das artistas, para falar das relações construídas (ou conhecidas) por elas no fazer:
Myers usou a costura para falar de ligações, outros concentram-se na metáfora de continuidade da linha dessa costura: a linha do tempo, um fio de pensamento... DERDYK partiu disso, em seu texto poético Linha de Costura (1997), para pensar a poética do tempo que se mostra a ela em seu fazer com a linha: por um lado, o fio contínuo, que quanto mais se costura mais parece ter o que costurar; por outro, a agulha que perfura o material e deixa nele registrado o ponto. Esse último é apresentado pela artista como seu intuito de ligar-se ao infinito, de fixar-se no tempo e vencer a sensação de inutilidade causada pela repetição da costura: "o ato de costurar segura um pouco o tempo vivido, aqui e agora, e imediatamente perdido" (ibid.). Louise BOURGEOIS (1995) também passeia pelas idéias ligadas à linha. Fala das similaridades existentes entre os entraves do fazer artístico e os da vida, através da metáfora do nó. Ela partiu de tal imagem, representada em um desenho seu, para discorrer sobre as dificuldades com as quais nos deparamos constantemente . Segundo ela, falar dos nós não significa queixar-se da vida ou dos entraves do fazer, mas destacar esse fator indispensável no desenvolvimento de qualquer vivência. Assim como essa artista, também percebo que são os nós da criação (os entraves, as dificuldades de resolução plástica e conceitual da obra) que nos permitem crescer no processo de desenvolvimento de linguagem. É na superação de tais nós - que acontecem, ora por encontrarmos as soluções para eles, ora por deixarmos de percebe-los como problemas, ou seja, incorporando-os como elemento constitutivo do processo - que a obra se transforma. Mas, prefiro falar deste "processo dos nós" em arte, explorando o caráter metafórico de tal imagem: Depois de rolar pelo chão, levado pela pata de um gato brincalhão, o carretel solta de si boa parte do seu fio de linha. Ficando a linha toda embaraçada, começo a tentar desfazer seus nós: primeiro tiro os maiores, mais evidentes, depois aparecem dezenas de outros, que estavam encobertos até então, e depois, centenas de outros surgem... O ato de desfazer alguns nós, cria tantos outros. Após solucionar inúmeros grupos de nós, percebo-me próxima do fim deste "problema". Então, a maior dificuldade é perceber até o último nó existente nessa finíssima linha. O último, imagino, é deveras sutil - tão sutil que a maioria das vezes nem pode ser percebido e, então, acaba sendo relegado. Aquele que vinha desfazendo os nós, mesmo sem solucionar este último, dá por encerrado o serviço e começa a costurar antes da hora. No final das contas, são poucos os que têm paciência para desfazer nós; menos ainda, os que têm competência para descobrir os entraves de cada pequeno nó - por isso, muitos desistem na metade do caminho ou então, fazem "vista grossa" e começam a costurar com aquele fio disforme mesmo.
A Memória da Matéria Entender
o ato de costurar como agente de ligação, nos conduz à complexidade
simbólica da costura. Ajuda a vê-la muito mais densa do que aparenta
ser, além da simplicidade de sua técnica. A costura não liga apenas
um material a outro, ela liga o artista/público que a vive a uma teia
de significações. Entre os diversos níveis de significação da costura,
interessa-me, neste momento, destacar aquele que nos enlaça para
dentro do labirinto da memória dessa prática. |
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Leonilson, |
Por
Memória não entendo o registro de um passado congelado pelo tempo. Memória
é algo infinito, que se mostra e se faz a cada manifestação
de um de seus fragmentos; por exemplo: a costura em Lia Menna Barreto
exala questões próprias dessa prática e, por isso, refaz a memória dessa
prática. Não quero dizer com isso que, ao contemplar sua obra, venha-me
à mente toda a história dessa prática. Mas digo que, determinados elementos
presentes nos bichos e bonecos dessa artista - a disposição dos pontos,
o modo como cada ponto é dado, o acabamento do último ponto e assim
por diante -, re-constroem facetas bastante particulares da tradição
doméstica da costura. |
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Eclea BOSI, partindo de seus estudos de história oral, pontua que refazer o passado pelo ato de lembrar é um movimento natural da mente humana. Bosi comenta essa natureza maleável da Memória:
Essas questões ajudam-me a entender que a costura quando presente na obra dos artistas aqui comentados - mesmo sendo elaborada a partir de materiais diversos (além da linha e do tecido de algodão) e empregada a fins divergentes dos característicos de sua tradição (como o vestuário) - não deixa de refazer a memória dessa tradição. Pelo contrário, tais atitudes artísticas apenas enriquecem sua memória, refazem-na, ajudam-na a viver. Uma tradição mumificada, está morta. O
que marca essa Memória em algumas obras da arte contemporânea que se
servem de práticas cuja tradição não é artística-erudita, ao meu ver,
é o motivo que as faz estar ali. Na obra de Lia Menna Barreto,
por exemplo, a costura está na construção da pele de seus bichos e bonecos.
O modo como essa artista aplica a costura - preocupada de ter um tecido
bem esticado, com os cantos bem costurados e os pontos minuciosamente
bem acabados -, demonstra uma intenção comum à de muitas costureiras
e revestidores de estofados. Outro exemplo é Leonilson: seus paninhos
bordados são, antes de mais nada, bordaduras. Mesmo trabalhando
com temas e formas pouco comuns aos bordadores de lenços, toalhas e
lençóis, é a forma como Leonilson aplica seus pontos que o amarra
à tradição do bordado. Já Edith Derdyk, mesmo sendo a mais ousada dos
três artista para o uso de materiais diversos na costura, adota uma
postura no uso dessa técnica que não a inclui na tradição da prática
doméstica da costura. A costura não-permanente de Edith Derdyk mostra-se
como um modo - entre tantos outros de seu processo, como a amarração
e o enovelamento - que a artista encontrou para fazer a linha percorrer
materiais e espaços diversos. A Matéria que é (re)memorada em Edith
Derdyk é a Linha, em específico, e não a prática da costura. |
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Lia Menna Barreto, |
Esse
movimento de reconstruir a costura é enriquecedor para o artista
que se propõe penetrar na "inteligência interna" dessa prática - como
referiu Chiarelli (op.cit.). É isso que permite ao artista viver, com
intensidade, a prática particular da costura em meio ao seu processo
artístico como um todo. Ponto que me parece singularizar determinados
artistas do circuito artístico atual - como Leonilson e Lia Menna Barreto
- entre os muitos que se servem de práticas da tradição (dita) "popular". |
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No desenrolar deste texto, intentei pontuar algumas facetas das obras contemporâneas que adotam a prática da costura no seu processo - como é o caso de Edith Derdyk, Lia Menna Barreto e Leonilson. Daí, expus algumas diferenças percebidas na relação das obras desses três artistas: enquanto Edith Derdyk pesquisa as possibilidades da linha na amarração de materiais diversos, Lia Menna Barreto adota a prática da costura para construir formas "escultóricas", feitas com tecido, espuma e outros materiais e procedimentos próprios da tradição da costura, Leonilson faz da costura e do bordado o elemento principal de boa parte de sua produção. Salvas as diferenças - e sem querer desmerecer ou vangloriar a Obra de nenhum desses artistas - percebo que na produção de Leonilson e Lia Menna Barreto a costura mostra-se como uma prática singular, de uma tradição latente, e extrapola a função pragmática da técnica. Considerando isso, não poderia entender a presença da costura no circuito artístico erudito simplesmente como resultado das pesquisas modernas, ou como resultado do intuito das artes plásticas deste século em renovar suas "ferramentas criativas". Percebo sim que tal prática, ao fazer-se presente em sua plenitude, atende a uma carência simbólica de nossa época, ou seja, responde a necessidades culturais que extrapolam questões restritas à Arte. Refiro-me à falta de "amarras" do indivíduo contemporâneo. A velocidade e mobilidade, características necessárias ao modo de vida de nossa sociedade capitalista, trazem como conseqüência o desenraizamento do indivíduo contemporâneo (nota 20). Os objetos que predominam hoje, são os que nos ajudam a viver de forma mais "prática" - e não aqueles com os quais estabelecemos vínculos subjetivos. Aqui, a substituição (de objetos, práticas e pessoas) é rápida e impiedosa. Mas, no intuito de preservar os últimos laços com o coletivo, acabamos "preservando" - geralmente escondendo, congelando, isolando - algumas peças do "quebra-cabeça" de nossa identidade: os objetos de família, as práticas tradicionais e as histórias dos mais velhos. São essas peças que nos contam quem somos, de onde viemos, nos dão a sensação de continuidade ao mostrarem-se como registro material de nossa memória. Eclea BOSI (op.cit.: 441) comenta que, na sociedade de hoje, os "objetos biográficos" são os responsáveis por suprir a necessidade do indivíduo de perceber-se como parte de um coletivo, pois nos dão a sensação de "continuidade". Ela cita um trecho de Machado de Assis, em Dom Casmurro, a fim de ilustrar tal situação:
Neste contexto cultural, onde o indivíduo encontra-se desagarrado das teias características da vida em sociedade, sustentado apenas por relações sociais não-permanentes, a costura faz-se duplamente necessária: atua como simbolizante e signo de amparo do sujeito. Como simbolizante, porque, como coloca Gilbert DURAND (1989), o ato de costurar traz à tona o simbolismo do enlace, da união, da aproximação: a costura é, antes de mais nada, um agente de ligação. Como signo, porque remonta, no espaço da obra de arte, a idéia de "história familiar", das origens do sujeito. A imagem da costura nos remete às nossas raízes mais íntimas. Essa dupla resposta dada pela costura às carências simbólicas de nossa época, ilustra a relação entre identidade e intimidade, recorrente no discurso crítico sobre a Arte de nossos tempos: o artista contemporâneo constrói sua identidade mergulhando em si próprio (sua vida, história pessoal, subjetividade), essas são as suas referências de criação (nota 21).
A obra de Leonilson é exemplo disso. Ali, a identidade é marcada através de uma poética de caráter intimista. Sua obra mostra-se como espaço de cruzamento entre tradições (memórias) particulares e coletivas. Ou seja, visualidades e histórias provenientes de suas infância (do pai que era comerciante de tecidos, da irmã e avó que costuravam e bordavam) coabitam com influências do ambiente artístico (como Leda Catunda, Arthur Bispo do Rosário e Hélio Oiticica) e de tradições diversas (da sociedade alternativa dos Shakers, que valorizava atividades artesanais; da cultural nordestina). Leonilson (sua Obra) é isso, a convergência de influencias múltiplas. Lisette Lagnado (ANTÁRTICA..., op.cit.), referindo-se a produção brasileira emergente da última década, destaca a presença de tradições culturais (religiosas, familiares e regionais), derivadas da vida política do artista, como peça-chave para Obra que se propõe ser construtora de identidade. A vivência intimista não está apenas no processo do artista, mas vaza para a relação estabelecida entre obra e público. CHIARELLI (op.cit.) trabalha com a idéia de que a arte de hoje visa uma experiência individualizada do "espectador" com a obra. Segundo ele, a obra contemporânea não se presta ao ócio, à preguiça de um olhar pouco interessado; mas exige uma vivência intensamente subjetiva do "espectador" que acaba sendo co-autor dessa obra. Em tal medida, as imagens da memória pessoal do artista, projetadas em obra, se prestam a metáforas de uma memória coletiva, da vida íntima do sujeito contemporâneo, da identidade. O modo como a linguagem contemporânea é construída dá margem para que se estabeleça tal nível de relação entre público e obra. A obra contemporânea não tem o intuito de ser clara, nem unívoca. Lorenzo Mammi (ANTÁRTICA..., op.cit.) comenta que "as coisas ditas" em arte contemporânea são colocadas de modo que não sejam passíveis de uma decodificação. O que é previamente determinado é um jogo de esconde-e-mostra que tempera as questões de intimidade/identidade reveladas ali em tom confessional. Para ilustrar tal situação Mammi cita o mito clássico de Píramo e Tibete:
Florianópolis, dezembro de 1999.
>>> início Bibliografia: ANTÁRTICA ARTES COM A FOLHA. Catálogo Oficial. s/ local, 1998 (impresso na Itália). BOURGEOIS, Louise. Drawings & Observations. 1995, California: Bulfinch. BRITO, Ronaldo. VENANCIO FILHO, Paulo. O Moderno e o Contemporâneo (O Novo e o outro Novo). Rido de Janeiro: Funarte, 1988. CHADWICK, Whitney. Mujer, Arte y Sociedad. Barcelona: Destino, 1992. CHIARELLI, Tadeu. 15 Artista Brasileiros Colocando Dobradiças na Arte Contemporânea. São Paulo, 1996. Catálogo de exposição promovida por Itaú Cultural no MAM-SP. CHIARELLI, Tadeu. O Tridimensional na Arte Brasileira dos Anos 80 e 90: Genealogias, Superações. 1997. Endereço eletrônico: http://www.itaucultural.org.br/itau-cultural/index.html COELHO, Teixeira. Moderno Pós-Moderno. 1986. São Paulo: L&PM. DERDYK, Edith. Linha de Costura. São Paulo: Iluminuras, 1997. GABLIK, Suzi. Há Muerto el Arte Moderno?. 1987. Madrid: Herman Blume. GALERIA CAMARGO VILAÇA. Lia Menna Barreto. São Paulo, 1993. Catálogo de exposição. GREENBERG, Clemente. Clemente Greenberg e o Debate Crítico. 1997. Rio de Janeiro: Zahar/Funarte. SOLER, Eduardo Pérez. La Repulsión y el Deseo. Lapiz, Madrid, n. 144, jun./98. WALKER, John A.. A Arte desde o Pop. Barcelona: Labor do Brasil, 1977. DERDYK, Edith. Rasura. MAC de Niterói. 1998. Endereço eletrônico: http://www.macnit.com.br/edith.html LAGNADO, Lisette. Leonilson - São Tantas as Verdades. São Paulo: DBA-Melhoramentos e SESI/SP, 1998. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembrança de Velhos. 3ª edição. 1994. São Paulo: Cia. das Letras. MAC-USP. Suturas - Grampos - Costuras. São Paulo, 1994. Catálogo da exposição de Brenda Baker e Edith Derdyk. DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Lisboa: Presença, 1989. REIS, Ronaldo Rosas. Conformismo Pós-Moderno e Nostalgia Moderna - As Ideologias Estéticas dos Anos 80. Ciberlagenda, n. 1, 1998. Endereço Eletrônico: http://www.uff.br/mestcii/ronaldo1.htm |