A mansão de Quelícera envolve muitos segredos. Sua história envolve feitiços, personagens maléficos e acontecimentos misteriosos. Logo, as imagens que a compõe não poderiam deixar de ser igualmente misteriosas. Determinadas estratégias de composição foram adotadas na criação dos ambientes da Mansão, soluções que também estão presentes em pinturas de alguns períodos da História da Arte: Gótico, Gótico Tardio, Maneirismo, Barroco e Romantismo; períodos de forte carga subjetiva, espiritual e mística. Não é ocasional o fato de que a maior parte das obras "apropriadas" para o nosso jogo são enquadradas pelos historiadores da arte nos períodos citados acima. Mesmo as obras presentes na Mansão que são enquadradas na História da Arte como renascentistas são obras com um mistério latente. Um exemplo é O Juízo Final, de Michelangelo, que mostra a passagem das certezas renascentistas para as dúvidas do século XVI, como afirma Hauser.

Os meios de conferir mistério às obras, de despertar o medo no espectador, variaram conforme a época e o artista. Vejamos alguns:

 

Evocação do terror

A temática é o primeiro ponto em que podemos pensar. Os temas obscuros do imaginário popular medieval, presentes na arte na Europa Setentrional dos séculos XV e XVI, nas obras de Bosch, por exemplo, mostram o aspecto terrível do mundo e da vida. A dança da morte, o ciclo da vida, as vanitas, são exemplos de temas que fazem o espectador defrontar-se com a realidade aterrorizadora que é a consciência sobre a inevitabilidade da morte. As formas de tratar o assunto variaram de artista para artista, desde as abordagens mais humoradas, de ar grotesco, como A jovem e a morte e O cavaleiro, de Baldung, até as mais dramáticas, como O triunfo da morte, de Bruegel.

 

Obscuridade

Entre os elementos visuais, a luminosidade da obra é fundamental para acentuar a carga dramática e misteriosa de uma imagem. Na passagem do Maneirismo para o Barroco, a luz começou a ser tratada como um elemento visual autônomo, como meio de abordar conteúdos místicos. Os contrastes de claro e escuro nos remetem ao contraponto entre certezas e incertezas, trazem à tona o universo incontrolável, não racionalizável, com o qual convivemos e, com maior ou menor intensidade, durante a vida ou no momento da morte, tememos. Essa mesma luz costumava ser representada durante o período Barroco penetrando o espaço em diagonal, como a luz provinda da esfera celeste que penetra por uma pequena abertura (janela ou porta) do ambiente representado, conduzindo o olhar do espectador em um ritmo intenso e conferindo dramaticidade à imagem. Ela leva o olhar do espectador da visão das zonas iluminadas ao infinito da escuridão. Wolfflin pensou sobre a relação entre a obscuridade nas imagens posteriores ao renascimento italiano e a cultura dos séculos XVI e XVII, o quanto isso foi a plasmação de um olhar mais subjetivo sobre o mundo.

A luminosidade direcionada e misteriosa está especialmente presente no ambiente da masmorra da Mansão de Quelícera. É neste ambiente, inclusive, que estão escondidos fragmentos de algumas das obras mais assustadoras da história da arte: em um dos corredores laterais está o espectro fantasmagórico dos anjos de A Última Ceia, de Tintoretto, e no outro a figura da Aranha de Redon; espalhadas pelas 6 salinhas estão as caveiras das obras Caveira e um Crucifixo, de Weyden, Pirâmide de Crânios de Cézanne, Caveira, de van Gogh, e Lê Jure, de Redon, assim como a luminária de Os comedores de batata de van Gogh e o personagem místico O Misantropo, representado por Bruegel, que deu origem a um dos habitantes da Mansão. Somando a luminosidade comedida, tons sombrios a cores quentes (ocres, avermelhados, alaranjados, etc), o espectador é envolvido pelo terror latente nas temáticas aqui abordadas. Outros exemplos de obras que seguem estes mesmos referenciais de composição, visíveis em outras partes da Mansão, são Árvore com corvos, de Friedrich, e As três idades, de Baldung. De forma geral, os ambientes da mansão de Quelícera foram criados com a predominância de tonalidades sombrias (cores rebaixadas) e quentes - Ver Despensa, os quartinhos do Enigma das três idades, acessível a partir do Quarto, e o Salão de Baile.

 

Deformação das figuras e instabilidade na composção

As figuras e os espaços, quando representados de maneira "deformada", infundem receio ao espectador. El Greco usou esse recurso, abriu mão do naturalismo e apostou no desenvolvimento de uma linguagem de caráter expressionista. O artista alongou suas figuras, valorizando o aspecto orgânico das formas e espiritual dos personagens, de modo a conferir-lhes um ar fantasmagórico. O que vemos então são figuras místicas aliadas a lugares extraterrenos, onde parece faltar a gravidade. Tal efeito é também obtido pela organização da composição a partir da forma de losango, ou de triângulo invertido, o que confere pouca estabilidade e muito movimento à composição (ver O Espólio).

A relação intrínseca entre o aspecto espiritual e físico do ser humano já esteve anunciada em Tintoretto. Em A Última Ceia, o artista misturou formas fantasmagóricas com figuras tratadas de maneira naturalista, conjugou o espiritual com o real, a certeza do discurso bíblico com o aspecto obscuro e incomensurável da religiosidade humana. Em A anunciação, ele explorou a expressividade de um corpo que se contorce e intensifica o ritmo da composição, explicitou o aspecto transitório da cena representada e da própria vida. O ocorrido foi figurado com a fugacidade de uma rajada de vento, que soprou naquele momento, e tudo tranformou.

O fato desses artistas falarem sobre o aspecto sinistro da vida não torna suas obras menos belas. Pelo contrário, elas trazem à tona uma outra possibilidade de beleza, diferente do ideal de beleza clássico, comedido e objetivo. Mostram o belo sublime, que tem sua origem no medo suscitado pela visão do desmedido, da obscuridade, do silêncio, do sinistro... produzindo perturbação e deleite. O conceito de sublime costuma ser usado para pensar a obra dos artistas românticos, como a de Friedrich, na medida em que foram os pensadores dos séculos XVIII e XIX que rememoraram esse conceito filosófico. As obras desse artista, assim como as obras citadas acima, plasmam a existência de algo incontrolável no universo, na vida, no homem, mas não revelam que força é essa. É por isso que nos amedrontam e nos seduzem ao mesmo tempo.





Atualizado em 16/01/2006.

 

 

Apresentação do Site do Educador




Michelangelo
Juízo Final



Baldung
A Jovem e a Morte e o Cavaleiro


Bruegel
O Triunfo da Morte



Redon
Aranha



Weyden
Caveira e crucifixo, detalhe da obra Tríptico da Família Braque


Cézanne
Pirâmide de Crânios


van Gogh
Caveira


Redon
Lê Jure


Van Gogh
Os Comedores de Batatas



Bruegel
O Misantropo



Baldung
As Três Idades do Homem e a Mort
e


Friedrich
Árvore dos Corvos


El Greco
O Espólio


Tintoretto
A Última Ceia


Tintoretto

A Anunciação